(palavras) (elemento água)
“E eles contentes. “
à avó Irene por me ter ensinado os finais felizes
à avó Irene por me ter ensinado os finais felizes
Era uma vez um peixe vidro. Não porque fosse realmente feito
de vidro, mas sim porque era transparente. Completamente e totalmente
transparente. Reluzente e refletor. Podiam ver-se todas as suas espinhas, todos
os seus segredos e todo o conteúdo dos seus bolsos. Não tinha por onde esconder
nem ideias, nem inquietudes, nem berlindes. Tinha o olhar aflito de quem se
sente despido e a nu. O tempo todo. O olhar aflito de quem foi apanhado em
flagrante delito. O tempo todo. O olhar aflito de quem tem que pôr tudo à
mostra, mesmo que não queira. O tempo todo.
Sentia-se embaraçado por ser visto desde a sua espinha até
ao fundo da sua alma de peixe vidro. Sentia-se frustrado por não poder ter
segredos e por não poder guardar segredos. Sim, ninguém lhe queria contar
segredos. Se os colocassem numa montra de uma rua principal de uma grande capital, o resultado seria o mesmo. Deixariam de ser segredos,
tão subitamente, tão repentinamente. Todos o evitavam, convictamente e
furiosamente.
Acrescia um problema grande, infame, trágico. Mesmo que
ninguém quisesse partilhar segredos, mexericos ou desabafos com o peixe vidro,
assim que se cruzavam com ele, por entre mares, algas e corais, era como, de
repente, se vissem a um espelho. Claro, cristalino como a água e como a
verdade. Viam-se também eles a nu, por dentro, por fora e do avesso. Sim, o peixe
vidro refletia tudo a quem por ele passasse, desde a espinha até à alma. Cartas
de amor e lenços de assoar. Constrangimentos e contradições. Vulnerabilidades.
Fragilidades. Coisas feitas de vidro e coisas feitas de cristal.
Tinha, então, o ar aflito de quem reflete tudo, mesmo que
não queira. De quem vê mais do que quer, de quem sente mais do que quer e de
quem sabe mais do que quer. Por vezes era como se fosse atravessado de um
lado ao outro. De tal forma que ficava sem saber, nem compreender, quais as espinhas
que eram dele e quais as fragilidades que não eram. Escondia-se, então, avidamente.
Atrás de uma rocha, de um coral, de uma baleia. Não era feito de vidro, mas era
como se vivesse numa redoma. Fugia à aproximação de uma sombra ou ao restolhar
de um som. Para poder guardar, à chave, o alcance do seu reflexo. Aquilo que
mais queria era um abraço. Aquilo que mais temia era, também, um abraço.
Nos dias de corrente quente, o peixe vidro gostava de sentir
as espinhas e o coração a relaxar. O conforto da temperatura. Atrevia-se a
nadar cinco milímetros a mais. A estibordo e a bombordo. E foi precisamente num
dia de corrente quente que deu à costa, a cinco milímetros da sua rocha, um
estranho cardume. Peixes que pareciam feitos de vidro. Conseguiam ver-se as
suas espinhas, os seus corações e o conteúdo dos seus bolsos. Postais antigos,
canetas “bic”, um lanche para o “ratinho” do estômago, uma fisga feita de ramo
de oliveira. Estava maravilhado. Os seus olhos já não eram olhos de aflição,
eram olhos de deslumbramento e de curiosidade. Aproximou-se, devagarinho, pé
ante pé.
Eis que, ao aproximar-se, viu-se refletido e viu o seu
reflexo. Tinha-se, finalmente, visto ao espelho. Conseguia ver o seu bloco de
notas e os berlindes coloridos que trazia nos bolsos. Os seus olhos já não eram
olhos de aflição, eram olhos de reconhecimento. Via como os seus segredos se
arrumavam em pequenas caixas por ordem alfabética. Via como a sua alma acendia
uma luz de cada vez que os outros peixes lhe olhavam nos olhos. Via o contorno
do seu corpo de peixe de vidro, barbatanas, cabeça em forma de “v”. Via onde
começava e onde terminava. Conseguia sentir, à transparência, que tinha raízes
e que tinha sonhos.
Foi assim que começou a nadar metros de distância. Primeiro
um, depois outro, depois mais dois. Foi assim que começou a não fugir de cada
vez que encontrava alguém. Apesar de ver o reflexo dos peixes, das alforrecas,
dos búzios, dos mexilhões, dos camarões, das estrelas do mar, dos cavalos
marinhos, sabia agora que a barbatana às riscas era do peixe palhaço e não sua.
Que a personalidade eletrizante era da alforreca e não sua. Que o ouvido
aguçado era do búzio e não seu. Que a tristeza de ser aquele a quem tudo
acontece é do mexilhão e não sua. Que o orgulho em ser cor-de-rosa era do
camarão e não seu. Que a família que vivia no céu da noite era da estrela do
mar e não sua. Que a grande enciclopédia dos contos de fadas era do cavalo
marinho e não seu.
Foi assim que, todos eles, começaram a não evitar o peixe
vidro. Pelo contrário, procuravam-no. Viam-se, assim, refletidos e viam o seu
reflexo. Com principio e com fim e com centro também. Porque o peixe vidro
sabia agora onde ele, e aqueles que refletia, começavam e onde ele, e aqueles
que refletia, terminavam. Conseguia também ajudá-los a compreenderem o que
viam. Conseguia devolver-lhe aquilo que tinham de mais bem escondido e
esquecido. Conseguia ajudá-los a deslumbrarem-se com o que viam. Até mesmo com o que neles era feito de vidro e feito de cristal. E foi assim que o peixe vidro
tinha aprendido a guardar segredos. Incluindo os seus. Tinha compreendido que haviam
segredos que não eram dele.
Com o tempo foi-se aproximando mais e mais. Do peixe
palhaço, da alforreca, do búzio, do mexilhão, do camarão, da estrela do mar, do
cavalo marinho. E foi assim que o peixe
vidro passou a dar e a receber abraços. Sabendo que não perderia espinhas nem
berlindes por abraçar. Sabendo que por senti-los não ficaria cor-de-rosa como o
camarão ou às riscas como o peixe palhaço. Sabendo que poderia sentir a
tristeza com o mexilhão sem ter que a levar consigo. Dava até mesmo abraços à
alforreca. Sabendo que não poderia esquecer-se de colocar o creme para a
urticária.
por Ana Sevinate
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