(sentires)
"Aqui sou eu em tudo quanto amei."
Sophia de Mello Breyner Andreson
Quando a cor suspira, a água cora. Mergulho. Imersão. Alga,
que é seca agora, lembra-se outra vez de quem foi. Funde-se, embebe-se.
Infusão, bebida mágica. Antes envelhecida, regressa. A água devolve-lhe a vida.
Em troca das suas memórias, que agora é das duas. Da alga, da água. O espírito
é agora das duas.
Quando a cor se expande, a água ganha alma em tons de anis. Do paraíso,
dos miosótis e das fitas de cetim. Dos dias no rio fresco, da capa de um livro
que contava a história de uma nuvem.
Quando a cor se espreguiça, a água ganha alma vestida de carmim. Das
cerejas, de um sorriso teu, do amadurecer. Dos dias de zanga espevitada
e dos doces amores de Fevereiro.
Quando a cor se espraia, a água ganha alma com reflexos douradas. Do creme
de ovo, do olho da flor e das manchinhas da salamandra. Dos instantes de
saudade e dos álbuns de fotografias.
Quando a cor suspira, a água cora. Pincel que no movimento
da sua valsa, semeia uma paleta na transparência pintada. Compasso de espera.
Nuvem de mil nuances. Torpedo de mil e uma tonalidades. E o que era cristalino,
é agora um caleidoscópio. Faces de um cristal. Pixels, viagem espacial.
Porque somos também nós. A água em nós. Pois o que partiu,
retorna sempre. A nós. Uns aos outros. E de cada vez que nos toca, revive em
nós. E de e cada vez que nos faz cócegas, respira em nós. Na quimera, na
fragrância, no reflexo e no murmúrio.
Respira fundo e mergulha. Na água em nós.
Com raízes em forma de líquen. Com flores em forma de coral.
Já não somos os mesmos. Água quente que nos corre nas veias.
Somos tisana. Cruzamo-nos, bailamos, enfrentamo-nos, respiramo-nos. E já não
somos os mesmos. Folhas que se lançam e que se permitem embeber. Transcendem-se
os genes. Serpenteia a hélice. O velho restaura-se e o que morre desponta outra
vez. E outra vez. O espirito é agora das duas. Da folha, da água. Passagem
xamânica.
Já não somos os mesmos. De cada vez que a recordação se
infiltra e nos aquece. Somos chá. E então é assim que a folha hidrata a sua identidade
conservada na secagem. E então é assim que a água reúne as páginas da sua história.
Submersa. Biografia subaquática, floral. Plâncton que é jardim suspenso.
Emergência
de um mergulho. Sobressalto de um segredo, milenar.
por Ana Sevinate
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