11/05/2017

o medo e o cogumelo poeta


(palavras) (elemento terra)

Era uma vez um medo que se infiltrou num cogumelo. Para poder crescer em terra húmida e bolorenta. Para poder crescer sem raízes. Para poder crescer em todo lado. Nos campos, nas janelas dos carros antigos e na comida esquecida na dispensa. Pé ante pé e com pezinhos de lã infiltrou-se. Escavou, construiu uma gruta e ficou lá a morar. Gostou, sentiu-se em casa. Criou uma moda. O medo de nos perdermos aderiu. O medo de ficarmos sozinhos aderiu. O medo de não conseguirmos também. O medo do escuro, o medo de dizer asneira e o medo de fazer más figuras. Todos os medos passaram a morar em cogumelos e, assim, se espalharam rapidamente. Pelos bosques, pelas varandas, pelos cestos de piquenique. Não havia cogumelo onde não houvesse medo que espreitasse. Espalharam-se pelo mundo, infiltrados. Disfarçados de cogumelos.

Os cogumelos protestaram. Não gostaram da ideia de serem confundidos com medos. Houve um cogumelo espevitado que tomou o lugar da frente. Liderou o protesto. Distraiu o medo que vivia dentro de si. A ele tinha-lhe calhado o medo das alturas. Logo ele, que tinha nascido e crescido bem lá no alto do cume de uma montanha. Depois encheu o peito de ar. Esticou o seu pé de cogumelo e inclinou ligeiramente o seu chapéu de cogumelo e espreitou o sol. Mandou o seu medo ir espreitar o que se passava lá em baixo. Tinha ouvido dizer que estavam a construir empreendimentos turísticos para medos. Feitas com torres múltiplas, cogumelos múltiplos, que nascem do mesmo pé.

A inspiração veio em forma de uma brisa, muito suave, que lhe fez cócegas. Acendeu-se uma luzinha lá dentro e a luzinha ocupou a casa e o espaço que eram do medo. “Já sei! “, clamou, e como tinha mandado o medo ir passear, olhou para os rios no sopé da montanha. Convocou os cogumelos que conseguia alcançar. A palavra passaria de cogumelo em cogumelo e chegaria aos outros todos. Aos que viviam nas janelas dos carros antigos e aos que viviam nos cestos de piquenique. O cogumelo declamou assim: “No mundo existe algo, não é medo, nem é cogumelo, mas brota igualmente, simplesmente, espontaneamente, por entre sopros por entre vontades, por entre profundezas, e por entre claridades, é irmã do medo e brota da imaginação, singela iluminada, à desgarrada. “

Todos os cogumelos compreenderam. O cogumelo poeta referia-se, nem mais nem menos, do que à ideia. Sim, as ideias, tal como os medos, são como cogumelos. Os cogumelos compreenderam que, se a imaginação é na sua raíz e na sua essência, espontânea e selvagem, as ideias, tal como os medos, podem brotar nos bosques e nas despensas. Exclamaram “brilhante” e lá do alto conseguiam ver-se as luzes espalhadas pela paisagem. Os medos não gostaram muito da ideia de serem desalojados. Por isso tornaram-se nómadas, à espera de uma casa vazia. Às vezes acontece quando uma ideia sai atrás da curiosidade e é preciso seguir-lhe o rasto. Os medos voltam também sempre que é preciso ficarmos quietos, corrermos para longe ou arreganharmos os dentes.   


por Ana Sevinate




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