08/05/2017

saber perder


(sentires)

A perda é imanente à vida. Passamos a vida a perder. Perdemos coisas, perdemos pessoas e perdemos também sonhos. No entanto, a verdade é que não sabemos perder, não fomos ensinados a fazê-lo. “Não penses nisso”, “segue em frente” é aquilo que nos dizemos e que, necessariamente, dizemos também aos outros. Dizem-nos que o que é preciso é ganhar, ganhar dinheiro, ganhar a corrida, ganhar estatuto, ganhar o direito, ganhar a vez, ganhar a lotaria.

Perder não é suposto e, assim, quando acontece, sentimo-nos necessariamente errados. Sentimo-nos errados por ficar tristes ou zangados ou perdidos. Então fazemos conta que ninguém viu. Tentamos fazer de conta que não aconteceu. O que não sabemos, também, é que aqui reside a maior perda de todas. Pois se não damos o tempo e o espaço que a perda precisa e merece, perdemos inevitavelmente o ganho que a perda traz. Pois se a perda é imanente à condição humana, o processo de luto é imanente à psique.

Quando perdemos a idade que tínhamos ou a pessoa de quem gostamos, quando os nossos filhos saem de casa, quando ficamos doentes e perdemos saúde, quando mudamos de emprego ou até o perdemos, quando mudamos de cidade ou de país, é importante que paremos. Não deixamos de viver. Simplesmente paramos, para olharmos para dentro de nós e para olharmos para o que está à nossa volta. Paramos para poder ficarmos tristes, zangados, perdidos ou mesmo aliviados, esperançados, motivados.

Quando perdemos, algo em nós muda, a forma como vemos o mundo também muda e, dependentemente da gravidade e da intensidade da perda, o sentido e o significado da nossa vida também podem mudar. É necessário, então, um tempo e um espaço próprios para encontrar um novo sentido e para resignificar. É necessário tempo e espaço para sabermos quem somos agora e para onde seguimos caminho.

Não existe nada de errado em sentirmos dor pelo que perdemos ou pelo que deixou de ser como era. Antes pelo contrário, se queremos seguir em frente, é preciso, senti-la, pensá-la, expressá-la e honrá-la. Os rituais tornam-se, então, importantes, não só aqueles que conhecemos –  funerais, aniversários e cerimónias, passagens de ano, mas também os nossos próprios, pessoais, sempre que sintamos que se fechou um ciclo e que está prestes a iniciar-se um novo. Segundo Robert Romanyshyn, cada processo de luto corresponde a um Inverno e, como qualquer estação do ano, é necessária, tem o seu tempo e não pode ser acelerada. Torna-se, assim, fundamental tentarmos não ser impacientes com quem estiver a atravessar uma experiência de perda e um processo de luto, quer sejamos nós, quer sejam os outros.

É comum termos receio de dizermos aos outros aquilo que estamos a sentir, porque nos vamos sentir julgados, porque não nos vamos sentir validados, porque vamos sentir que não nos devíamos sentir assim. Da mesma forma, ouvir a tristeza, a desesperança, a falta de sono, a falta de apetite, ou a confusão dos outros pode ser difícil e por isso também não ouvimos, também dizemos aos outros que o melhor mesmo é pensar noutra coisa, sentir outra coisa. Importa, assim, sentirmos todos, que temos espaço para sentir, para dizermos uns aos outros “ouço o que estás a sentir”, “entendo ou imagino o que estás a sentir”. É precisamente daqui que se abrem novas possibilidades, que se iniciam novas estações.

É precisamente do reconhecimento, da escuta e da validação daquilo que possamos estar a sentir ou a experienciar, que se torna possível seguir, realmente, em frente. Nós mudamos e o caminho muda de direção e, sem romantizarmos, assumimos que este é um processo que traz dor e que, por essa mesma razão, tentamos evitar. Porém, se o evitarmos, acrescentamos, à dor da perda, a dor de não conseguirmos dar-lhe um significado. Significado este, que será tão único para cada um de nós e tão próprio ao que perdemos. Se a dor da perda nos faz questionar o sentido da vida, a resposta também só pode vir através dela. É, por isso, fundamental, que aprendamos a perder.

É neste contexto que a psicoterapia pode construir-se e co-construir-se como um espaço e um tempo próprios onde o processo de luto é acolhido e integrado. Por sua vez, ao validá-lo, reflete em nós a nossa própria capacidade de validação, facilitando e honrando o processo de luto para além do tempo e do espaço psicoterapêuticos. Aliás, podemos ainda dizer que todo o processo psicoterapêutico é um processo de luto (Romanyshyn), no sentido em que o que é fundamentalmente trazido para o setting psicoterapêutico é uma qualquer ausência. É desta ausência que emanam, pois, narrativas nunca contadas.

(Este artigo foi publicado em parceria com o Instituto Português de Desenvolvimento Pessoal)

Livro recomendado: "The soul in grief: love, death and transformation" de Robert Romanyshyn, North Atlantic Books


por Ana Sevinate

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