12/06/2017

no centro dos dois


(sentires)

“Aprendemos a escutar que não é o mesmo que ouvir,
a abraçar que é mais que tocar, a recordar aromas que é mais do que cheirar,
a poetizar com os pés, que não é o mesmo que falar.”
(Peri & Lavalle Cobo)


“Dançamos?” É a pergunta que fazemos sempre que nos aproximamos de alguém. Seja em passo firme ou de mansinho. No tango. Na relação. Numa caminhada. E dançamos. Dançamos sempre, seja em abraço fechado seja em abraço aberto. Seja intensamente ou com doçura. Seja em desencontro ou reencontro. Sempre com falha. A falha que é própria à comunicação. Abraçando vulnerabilidades. Abraçando medos e hesitações. E abraçando sonhos também. Sempre e constantemente numa aproximação nova. Sem querer encaixar a dança anterior no agora. Sim, partindo de onde estou, de onde estás e de onde estamos, neste momento. Aceitando a nossa essência naturalmente impermanente (Pinkola Estes). Sentindo sempre. Reconhecendo esse sentir. E comunicando-o. Através do corpo.


Partindo, com curiosidade, à descoberta e ao improviso. Pois se dançamos ao som da música anterior, torna-se provável o desacerto, o encontrão, a pisadela, o puxão. É preciso ouvir, atentamente, aquilo que o eu, o tu e o nós nos dizem. Antes de cada passo. Só assim se dá espaço ao abraço. Um abraço que seja de contenção e não de esmagamento (Bucay). Um abraço que acolhe o que cada um dá e o que cada um recebe. Um abraço que está disposto a largar. Pois só nesse espaço, nesse abraço, só então aí, só mesmo aí, pode ser renovado o vínculo. Uma renovação de votos permanente, ao iniciar de cada dança, de cada música, de cada instante. Um abraço que abre também espaço para o ser de cada um. Para que cada possa adornar* a dança e o abraço com aquilo que é mais seu. Pois só assim podemos existir em separado. E em individuação. É essa a verdadeira relação. E é essa a verdadeira dança. De igual para igual e em responsabilidade partilhada.

Sem um ter que dançar, e sentir, pelos dois. Porque só estando dispostos a largar, se abraça um abraço que permite que o tu venhas até mim sem ser fugindo. Só estando disposto a largar, se abraça um abraço que permite que o eu vá até ti em liberdade. E é só mantendo cada um o seu eixo é que nos podemos realmente abraçar. Um no outro. Uma raiz forte da qual parte uma ligeira inclinação. Uma oposição que não é uma resistência e sim uma aproximação firme. Um encostar que não é um abandono, mas sim um dizer “vem comigo que eu vou contigo, onde estivermos”. Um movimento enroscado que criamos em conjunto e que é o fruto de nós e que nos ultrapassa. Dando de braços abertos e recebendo com o corpo todo (Bucay).

Sim, porque no tango, tal como na vida, o eu e o tu não somos dois. Somos três. O três é a dança. O três é a relação, elemento terceiro que resulta de nós e nos supera num movimento próprio, rodopiante. Que nos leva, que nos traz, que nos puxa, que nos agarra. Com um compasso único e um ritmo próprio. E o equilíbrio reside precisamente e profundamente aí. Não está em cada um de nós. Está sim no centro dos dois (Bucay). E não será também a partir do cento dos dois que me conheço e descubro a mim mesmo? Que descubro quem sou e quem posso vir a ser? Em cada instante. E não será também a partir do centro e do movimento dos dois que nos descobrimos na tribo e no mundo? Realimentando o diálogo entre cada um de nós e nosso meio. Recuperando os vínculos sãos, tão necessários à nossa sobrevivência (Peri & Lavalle Cobo).

E que quando um larga, o outro largue também. Acompanhando. E que quando um se aproxima, o outro se aproxime também. Libertando. Girando em torno um do outro numa espiral de crescimento, de conhecimento e de sentido. Ganhando sempre cada passo nosso. Afirmando o próprio eixo. Porque aceitar um convite pode e deve ser ocupar conscientemente o espaço que é o nosso. Em escolha e em vontade. Porque entrega não é o mesmo que encarceramento (Pinkola Estés). Porque aquele que aceita o convite não se deixa levar. Leva-se a sim mesmo. Leva-se a si mesmo no abraço dos dois. E a forma como se responde ao convite é o convite seguinte ao passo do outro. Sucessivamente. Improvisadamente.

Porque ser-se espontâneo não é o mesmo que não se ser consciente. Muito pelo contrário. Antes de cada passo, um momento de reconhecimento. Onde estou, onde estás. Onde estamos. Ouvindo-me, ouvindo-te, ouvindo-nos. Só assim somos livres para regressar. E há momentos, há instantes de volcada*, de fora de eixo, em que o outro nos agarra ou em que agarramos o outro. Porque às vezes é preciso que seja assim. Em movimento também consciente e consentido. Até regressarmos ao nosso próprio eixo. Na confiança e na entrega de que há momentos em que nos podemos suster no outro. Na confiança e na entrega de que, se cairmos, nos levantamos. Permitindo, mais uma vez, a descolagem daquilo que achamos que somos. Aceitando que “não sei quem vou ser no minuto seguinte” (Lewis Carroll) e que assim me torno mais quem sou. Sentindo sempre. Sempre de regresso à minha raiz.

Paremos agora. Um segundo suspenso no ar antes da próxima dança. Antes da próxima tanda*. Respiramos fundo os dois, respiramos o ar que nos envolve. O ar da terra. Caminhemos agora, os dois. Porque tal como no tango e tal como na vida, o contato com a terra reflete o sitio onde estamos. O aveludado das pétalas das flores, as sombras, a forma das pedras do caminho, as cores do esvoaçar das borboletas, os aromas que caem das árvores, a velocidade da passada, o ir à frente ou atrás, ou lado a lado, os instantes da paragem, os lugares de contemplação. A dança e a natureza trazem isso na sua essência. Conectam-nos conosco, através do corpo. Conectam-nos conosco na relação com o outro, através do corpo. Numa comunicação sensível através da consciencialização dos atos desse mesmo corpo. E dessa tomada de consciência nascem mil danças possíveis. E nasce, sobretudo, a possibilidade de escolher como as queremos dançar.

Dançamos?



Livros recomendados: “Amar de olhos abertos” de Jorge Bucay; “Psicotango: danza como terapia” de Monica Peri e Ignacio Lavalle Cobo

*
Adorno: movimentos de decoração e embelezamento, utilizados pelo bailarino(a) para demonstrar a sua capacidade e para interpretar a música.
Tanda: conjunto de três a quatro músicas de estilo semelhante; cada tanda é separada por uma cortina musical durante a qual são escolhidos os parceiros para a tanda seguinte.
Volcada: retirada do eixo para a frente, produzindo um movimento de caída da perna; requere o suporte de um abraço fechado.



por Ana Sevinate



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