08/02/2019

a cor da água


(sentires)

"Aqui sou eu em tudo quanto amei."
Sophia de Mello Breyner Andreson


Quando a cor suspira, a água cora. Mergulho. Imersão. Alga, que é seca agora, lembra-se outra vez de quem foi. Funde-se, embebe-se. Infusão, bebida mágica. Antes envelhecida, regressa. A água devolve-lhe a vida. Em troca das suas memórias, que agora é das duas. Da alga, da água. O espírito é agora das duas.

Quando a cor se expande, a água ganha alma em tons de anis. Do paraíso, dos miosótis e das fitas de cetim. Dos dias no rio fresco, da capa de um livro que contava a história de uma nuvem.

Quando a cor se espreguiça, a água ganha alma vestida de carmim. Das cerejas, de um sorriso teu, do amadurecer. Dos dias de zanga espevitada e dos doces amores de Fevereiro.

Quando a cor se espraia, a água ganha alma com reflexos douradas. Do creme de ovo, do olho da flor e das manchinhas da salamandra. Dos instantes de saudade e dos álbuns de fotografias.

Quando a cor suspira, a água cora. Pincel que no movimento da sua valsa, semeia uma paleta na transparência pintada. Compasso de espera. Nuvem de mil nuances. Torpedo de mil e uma tonalidades. E o que era cristalino, é agora um caleidoscópio. Faces de um cristal. Pixels, viagem espacial.                      

Porque somos também nós. A água em nós. Pois o que partiu, retorna sempre. A nós. Uns aos outros. E de cada vez que nos toca, revive em nós. E de e cada vez que nos faz cócegas, respira em nós. Na quimera, na fragrância, no reflexo e no murmúrio. 

Respira fundo e mergulha. Na água em nós. Com raízes em forma de líquen. Com flores em forma de coral.

Já não somos os mesmos. Água quente que nos corre nas veias. Somos tisana. Cruzamo-nos, bailamos, enfrentamo-nos, respiramo-nos. E já não somos os mesmos. Folhas que se lançam e que se permitem embeber. Transcendem-se os genes. Serpenteia a hélice. O velho restaura-se e o que morre desponta outra vez. E outra vez. O espirito é agora das duas. Da folha, da água. Passagem xamânica.

Já não somos os mesmos. De cada vez que a recordação se infiltra e nos aquece. Somos chá. E então é assim que a folha hidrata a sua identidade conservada na secagem. E então é assim que a água reúne as páginas da sua história. Submersa. Biografia subaquática, floral. Plâncton que é jardim suspenso.    

Emergência de um mergulho. Sobressalto de um segredo, milenar.



por Ana Sevinate









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