(palavras)
(Por entre linhas que podem ser lidas em diferentes idades, conta-se uma história que todos nós conheceremos. Seja porque ganhamos anos, ou seja porque os perdemos....)
O Eduardo fazia treze anos. Tinha convidado todos os seus
amigos, colegas de escola e família. Estava tudo a postos; a mãe preparara tudo
até ao mais pequeno detalhe. Doces, salgados. Jogos e surpresas. Música, muita
música. Ele só não tinha contado com o nozinho na garganta nem com o aperto na
barriga que tinha sentido ao longo das últimas duas semanas.
Tentara escondê-los numa gaveta. Dá-los como acepipes aos dobermans do vizinho do lado. Tentara atirá-los cano abaixo. Sem se esquecer de puxar a água. O resultado não foi nenhum. Aliás, o nózinho na garganta e o aperto na barriga não só continuavam agarrados ao Eduardo como duas lapas com medo de caírem no mar, como cada vez mais impunham a sua presença. Estavam mais intensos. Mais insuportáveis. De tal forma que o Eduardo até se esquecera de como o incomodavam, o assombravam, as borbulhas que lhe tinham crescido no queixo, na testa e no nariz.
Tentara escondê-los numa gaveta. Dá-los como acepipes aos dobermans do vizinho do lado. Tentara atirá-los cano abaixo. Sem se esquecer de puxar a água. O resultado não foi nenhum. Aliás, o nózinho na garganta e o aperto na barriga não só continuavam agarrados ao Eduardo como duas lapas com medo de caírem no mar, como cada vez mais impunham a sua presença. Estavam mais intensos. Mais insuportáveis. De tal forma que o Eduardo até se esquecera de como o incomodavam, o assombravam, as borbulhas que lhe tinham crescido no queixo, na testa e no nariz.
Alguma coisa gritava dentro dele, cada vez mais alto. Numa
dessas noites, teve um sonho: estavam todos na festa. Divertiam-se, comiam,
riam-se às gargalhadas. Até a Maria, a rapariga mais bonita do mundo lá estava…
A dançar com o Nuno! Mas era ele, Eduardo, quem deveria estar ali. Ali, a
dançar com a rapariga que o fazia corar só de lhe dizer “bom dia”.
Onde estaria ele? Perguntou à avó, ao pai, à prima, ao Vasco
e ao canário. Ninguém o via, ninguém o ouvia nem tão pouco o sentia, e o mais
terrível de tudo é que ninguém parecia sentir a sua falta. Na sua própria festa
de anos…
Acordou aflito, assustado, esgotado, angustiado e, enfim,
compreendeu: não sabia de si mesmo, realização esta que lhe valeu, como que por
milagre, o desaparecimento do nozinho da garganta e do aperto da barriga.
Sumiram no ar como bolas de sabão num dia de vendaval.
Sim, porque o nosso corpo envia-nos mensagens. Se não as
lermos, a nossa caixa do correio vai ficando cheia até entupir, e aí, ai e aí
sim, temos mesmo que escutar com muita atenção o que ele nos tem para dizer. O
Eduardo ainda retirou uma segunda moral da história: não devia ter comido
tantos biscoitos!
O Eduardo resolveu, então, ir à procura de si mesmo. Começou
por procurar no seu quarto. Procurou debaixo da cama. Mil fios de cabelo cor de
cenoura, um carrinho de colecção que não via já lá iam três meses. De Eduardo,
nada.
Procurou dentro do guarda-fatos, mas voltou imediatamente a
fechá-lo. Pelo estado caótico do seu interior, estariam lá com certeza os
combatentes da Revolução Francesa. Com certeza que não haveria lugar para ele.
Eduardo resolveu arriscar e ir mais longe. Foi até à cozinha
confirmar se não teria ficado dentro do frasco dos biscoitos. Também não. Nem
ele, nem os biscoitos. Esses tinham-lhe dado uma noite complicada.
“Vou à luta!” –
pensou com convicção, e saiu apressado de casa. Procurou por todo o lado onde
se lembrou. Nas lancheiras dos outros miúdos que brincavam no parque: pães com
chocolate, iogurtes líquidos com sabores estranhos e fruta cuidadosamente descascada
havia pelo menos uma semana. Nas lojas de animais, dentro dos aquários: apenas
peixes incomodados, pedras apáticas e algas de um acetato viscoso.
Na mesa de uma esplanada, pesquisou no interior de uma caixa
com a marca de um sumo, de onde os guardanapos sugeriam serem retirados, um a
um, sem qualquer tipo de resistência. Eduardo fez-lhes o favor, aproveitando
para ter a certeza de que o que tanto procurava não estaria lá no fundo, a
seguir ao último papelinho.
Só mais uma experiência esquisita com um resultado inútil.
Além do mais, desagradável. Um empregado do café a correr furioso atrás dele
invocando a defesa das árvores e a sobrevivência do planeta. O Eduardo até
concordava com ele, mas a confusão que habitava a sua cabecinha naquele momento
tinha sido mais forte.
Estava exausto e o que é certo faria anos no dia seguinte e
fazia a mais pequena ideia de onde poderia estar. Sentou-se, por fim, num banco
de jardim onde uma gata riscada fazia a sua higiene diária. Sem querer
perturbar a privacidade felina, chegou-se para um cantinho tentando acalmar a
avidez que tinha o conduzido até ali.
Enquanto olhava cabisbaixo para os espaços que com esforço
tentavam unir as pedras da calçada, numa mistura de desânimo e esperança de
andar perdido algures por ali, ouviu uma voz sedutoramente arrastada que se
dirigia a ele.
- Humano de tamanho médio … Sim, tu aí. Quero dar-te os meus
sinceros parabéns.
A
gata fitava-o agora com os bigodes muito esticados. Depois de alguns segundos
em que Eduardo se sentiu verdadeiramente atordoado, sem perceber muito bem o
que se estava a passar, conseguiu retorquir:
- Bem, obrigada. Mas só faço anos amanhã.
- Não há dúvida que és mesmo um ser humano – afirmou a gata, por entre ronronos que mais pareciam risinhos. - No entanto pareces-me um bocadinho mais inteligente que os outros, dado que a maior parte dos da tua espécie deambula constantemente de um lado para o outro. Andam sem saber muito bem porquê nem para quê. Não procuram nada. Não acham nada. Gostam é de partir para depois chegarem e de chegar para depois partirem. Tu, meu docinho, conseguiste sentar-te e parar, por um instante que seja. Foi por isso que te dei os parabéns! – finalizou num miado teatral.
- O problema é que ando à procura, mas não encontro – disse desanimado o Eduardo.
- Bem, obrigada. Mas só faço anos amanhã.
- Não há dúvida que és mesmo um ser humano – afirmou a gata, por entre ronronos que mais pareciam risinhos. - No entanto pareces-me um bocadinho mais inteligente que os outros, dado que a maior parte dos da tua espécie deambula constantemente de um lado para o outro. Andam sem saber muito bem porquê nem para quê. Não procuram nada. Não acham nada. Gostam é de partir para depois chegarem e de chegar para depois partirem. Tu, meu docinho, conseguiste sentar-te e parar, por um instante que seja. Foi por isso que te dei os parabéns! – finalizou num miado teatral.
- O problema é que ando à procura, mas não encontro – disse desanimado o Eduardo.
- E o
que achas que procuras tu? Comida, areia, parceira? – perguntou a gata riscada
enquanto olhava de esguelha, com os seus olhos grandes, verdes, espertos, para
um pardal, que acabara mesmo de poisar nas costas do banco de jardim.
-
Para já, procuro-me a mim mesmo.
-
Tenho a ligeira sensação que te sobrestimei –
miou altivamente a gata. - É que não sei se já percebeste que tu estás
precisamente … aí!
-
Também já tinha reparado. Só o que eu procuro é mais do que tu estás a ver.
Procuro-me a MIM próprio, por dentro… É difícil de explicar…
-
Socorro – interrompeu a gata sem qualquer expressão de aflição. - Já te disse
que estás aí. Vou-te dizer um segredo, por isso quero que prestes muita atenção
e, desde já, considera-te um privilegiado por teres a oportunidade de beber da
sabedoria suprema dos felinos – e novamente ronronou, orgulhosa.
Acabando de lavar as almofadas fofas das patas da frente,
dedinho a dedinho, a gata riscada pestanejou ao jeito das actrizes de cinema e
sussurrou baixinho:
- A vossa espécie gosta de complicar aquilo que é
absurdamente simples, mas na verdade só o faz para se sentir inteligente,
inventando ciências que parecem explicar tudo. Vocês até conseguiram arranjar
uma explicação, bastante ridícula por sinal, para os gatos terem bigodes.
Francamente. Consideram-se donos e senhores do mundo. Aquilo que conseguem é
apenas baralharem-se cada vez mais.
Embora
tivesse questões a colocar à mestre felpuda, Eduardo concluiu sensatamente que
a sua mestre jamais aprovaria ser interrompida. Por esse motivo resolveu manter
primorosamente o seu papel de ouvinte muito atento. A gata mantinha fitas as
suas orelhas peludas, que mexiam atentas ao bater das asas das borboletas.
- Mas tu, sendo de tamanho médio, ainda vais muito a tempo de não te baralhares tanto. – a gata inclinou a cabeça num gesto preciso, e ao mesmo tempo, terno, inesperado.
- Mas tu, sendo de tamanho médio, ainda vais muito a tempo de não te baralhares tanto. – a gata inclinou a cabeça num gesto preciso, e ao mesmo tempo, terno, inesperado.
Continuou, enquanto a sua cauda comprida, e riscada,
executava movimentos perfeitos em absoluta sintonia com aquilo que, dengosamente,
ia dizendo:
- Primeiro que tudo, nunca te procures fora de ti. Seja numa
pessoa, num animal (até mesmo num gato), num objecto, numa situação, seja
naquilo que for. Ainda que por vezes te pareça difícil de a encontrar, a
verdade estará sempre dentro de ti. A gata riscada parecia ter terminado, dando
agora o espaço e o tempo suficientes para Eduardo reflectir um pouco.
-
Parece-me que tens toda a razão! – exclamou entusiasmado o Eduardo, como de
repente tudo se tivesse tornado tão claro e ridiculamente simples.
- Parece-te?! Meu menino, os gatos têm sempre razão, eu tenho sempre razão. Vocês, seres humanos, deveriam observar-nos com mais cuidado: relembrariam aquilo que sempre souberam e que resolveram esquecer. Pensem mais, perguntem mais, olhem mais, escutem mais e, por favor, façam o obséquio de correr menos, pois não chegam a lado nenhum e ainda conseguem a proeza de nos deixar a todos bastante tontos – proclamou com um enorme suspiro. Simulando um desmaio dramático, deixou-se cair comicamente devagar, ficando deitadinha de lado. Suspirou.
- Parece-te?! Meu menino, os gatos têm sempre razão, eu tenho sempre razão. Vocês, seres humanos, deveriam observar-nos com mais cuidado: relembrariam aquilo que sempre souberam e que resolveram esquecer. Pensem mais, perguntem mais, olhem mais, escutem mais e, por favor, façam o obséquio de correr menos, pois não chegam a lado nenhum e ainda conseguem a proeza de nos deixar a todos bastante tontos – proclamou com um enorme suspiro. Simulando um desmaio dramático, deixou-se cair comicamente devagar, ficando deitadinha de lado. Suspirou.
Dando
por terminada a sua boa acção diária, a gata riscada levantou-se,
espreguiçou-se vagarosamente, curvou-se fazendo uma ponte com as costas e
roçou-se com meiguice no Eduardo, dando-lhe a entender que estava a exigir uma
festinha. Despediu-se, oferecendo-lhe uma lambidela áspera e uma dentadinha
delicada na mão. Por fim, executou um salto acrobático e afastou-se abanando
felinamente as ancas. O Eduardo não pode dizer mais nada. Realmente, não queria
dizer mais nada. Estava tudo dito.
Reflectiu
mais um pouco e, espreguiçando-se, aproveitando todos os milésimos de segundo,
percebeu que se sentia bem. Aprendera que em alguns lugares seria falta de
educação fazê-lo, porém os bancos de jardim não se incluíam nessa lista.
Acabara de decidir, então, que iria dedicar um bocadinho de cada dia,
simplesmente, a esticar-se. Claro, sentadinho no banco de jardim absorvido
unicamente no seu pensamento. Em busca de si mesmo. Pelo menos com uma certeza
maior de que sempre lá tinha estado.
Eduardo
decidira, igualmente, viver mais atento a tudo o que rodeava de um modo geral,
mas em particular ao que se passava no seu interior e no de todas as pessoas
que conhecia. Acima de tudo, no interior daquelas pessoas que por alguma razão
o irritavam, ou as quais considerara que nunca seria possível vir a
compreender.
Até resolveu ser mais carinhoso com o Chiclete, o pinscher
da avó . Iria apenas pedir-lhe encarecidamente que não falasse, caso contrário
as consultas de psicologia iriam ter que ser uma hipótese a considerar.
Pensando bem, afinal de contas, ficara uma questão por
colocar à gata riscada e, assim, poderia ser que pudessem “dialogar” novamente:
qual seria a verdadeira razão dos gatos terem bigodes? Quanto à higiene diária,
Eduardo resolvera manter o banho como a sua única opção, deixando a
auto-limpeza para as espécies superiores.
por Ana Sevinate
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