24/04/2017

o ponto zero


(sentires)

Quando voltamos ao ponto zero. Momentos em que se derruba, de uma só vez, o que construímos. Fica um nada. Sem fios, sem rede. Sem amarras. Há um momento. Em que tudo pára. Não há passado, nem futuro. Há tão só um presente, que é tudo menos reconhecível. O tempo ganha outra consistência, outra velocidade. Não é mais rápido, nem mais lento, mas mais amplificado. 
O mundo. Os olhos passam a ver o mundo através de um véu, ou talvez de uma névoa. Com o nada vem uma espécie de indiferença, que não o é na verdade. É antes a recolha dos vínculos que nos ligavam à paisagem antiga. À paisagem natural, material e humana. Desvinculamos e pairamos. E então vem um desses momentos em que não é a liberdade que dá forma e resgata o nada, não é o sentido de possibilidade que nos invade. É o desamparo. É também a angustia de morte, no sentido de que efetivamente, do ponto de vista psicológico, há alguma coisa que morre. Parte de nós que deixa de existir tal como era. A transformação, o renascer, a alquimia, esses, são só sentidos mais tarde.
A resposta, aqui, é precisamente dada pelo presente. A contemplação do presente e do que que cada momento revela. Na sua inércia, no seu pormenor, na sua beleza, na sua poesia. Deixar morrer. Deixar de tentar agarrar, com unhas e dentes, os vínculos antigos. Doí, claro, mas deixa de ser a dor da luta, da culpa, do arrependimento e da desesperança. É a dor puramente da perda e é então aí que se abre espaço para nutrir, para a cicatrizar e, paradoxalmente, para ter esperança, sentido de possibilidade e futuro. Regressemos ao essencial. Dormimos, alimentamo-nos, embrulhamo-nos numa manta. Depois, uns de nós começam a começar a dançar, ou pintar, a escrever, a passear entre as árvores. Observamos os fios das nuvens, ouvimos o tecer das teias de aranha, sentimos o cheiro da chuva. Sim, porque tudo se amplifica. Tudo se sente mais. Vê-se tudo com mais clareza. Ainda não é tempo para projetos a longo prazo. É preciso ficar um bocadinho aqui. Dentro. Devagarinho, vamos depois oscilando, entre o dentro e o fora. Entre aninharmo-nos em nós mesmos e irmos lá fora, ao encontro do outro e do mundo. O significado e o sentido da vida virão de dentro para fora. Caso contrário, o fora vai-nos fazer sentir que a nossa vida foi roubada. Vamos sentir abandono e rejeição. E por isso mesmo, voltemos ao centro e ao essencial. É um tempo germinal, de ser semente no interior da terra. É importante o cantinho do costume, a sopa quente do costume, a paisagem do costume.
Quando perdemos o amor do outro, deprimimos. Quando deprimimos, congelamos em sentido psicológico. Congelamos para não sentir. Apesar de este ser um mecanismo de defesa, inibe a possibilidade criadora e a criatividade, a verdade é que a psique reage ao aconchego e não à falta de sensibilidade (Pinkola Estés). Para nos tirar do frio, é preciso calor. O calor dos cuidados básicos, do que nos nutre. E, então, o regresso do movimento criativo.
Se a dança está repleta de metáforas para a vida e para as relações, aqui está uma delas. Porque “o ponto zero” é também o ponto ao qual voltamos sempre quando dançamos. Os dois pés encontram-se, tocam-se, assentes no chão, tomam consciência de si mesmos, inspiram, sentem a intensidade do movimento anterior e enraízam de novo. Regressamos ao nosso eixo, ao nosso centro. Preparamo-nos então para o passo seguinte.

                                                                                                           

Livro recomendado: “As mulheres que correm com os lobos” de Clarissa Pinkola Estés, Editora Marcador



por Ana Sevinate
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