(sentires)
“Após ter dado continuação à desarrumação, sem conseguir
pronunciar,
ainda que mentalmente, uma única palavra, concluíu: “Ela existe.”
O que nos liga? Fitas, laços, botões, colchetes? Palavras,
sensações, emoções, pensamentos? Ou isso tudo e para além disso tudo? Costuras
invisíveis. Interiores. Inconscientes. Para além da nossa compreensão, mas não
para além do sentido. E há momentos, lá atrás, em que nos desligámos. De nós.
Corta-se a linha, desata-se o laço, cai o botão. Perde-se o molde. Porque
disse-nos o mundo que tinha que ser. Para encaixar no modelo, para o fato
servir. Para nos ajustarmos ao corte pré-definido. Para ficar impecável nos
ombros. Para a cintura parecer na perfeição. Manequins de roupa que não nos
serve.
Criam-se, nos primeiros tempos das nossas vidas, traçados
neuronais (Gerhardt), linhas, nós e remates que nos vão vestir daí por diante. E
criam-se também traçados herdados, tecidos de geração em geração. Em tear. Como
uma manta de retalhos. Vão-se desgastando, ao mesmo tempo que vão apertando. Coçados
do tempo, vão ficando fininhos, insistimos em usá-los. Mesmo com três tamanhos
acima ou com dois tamanhos abaixo. E com cheiro a naftalina. E tal como o corpo
se adapta ao corpete, a psique adapta-se ao espartilho. Criando formas que não
são as suas. Esquecemos quais são as nossas medidas. E o que nos enche a medida.
Desligamos. De nós. Dos outros. Da terra. Botão de punho. Galões e assertoados.
Nó de gravata. Sustem-se o ar. Prende-se o corpo. Prende-se a maneiras e a bons
costumes.
É na relação que aprendemos a prender-nos e é na relação que
se descose a bainha. Perde-se o alinhavo. Prendemo-nos e perdemo-nos. Perdemos
bocados de tecido de nós. E é também na relação e em relação que se pode voltar
a cerzir. E a bordar. Bordam-se desenhos novos. A dois. Ponto em cruz. O ponto
de um cruza-se com o ponto do outro. É a falha que nos descose. É o amor que
nos religa. É o afeto o substrato primeiro e primordial (Gerhardt). É quando
nos desprendemos que nos costuramos. É quando nos libertamos que nos
encontramos. Através do outro. É quando batemos asas que regressamos a casa.
Para isso é preciso parar de coser à máquina. Porque se não
pararmos o pedal, a agulha, continuamos a costurar no mesmo sentido.
Continuamos a procurar a falha. Continuamos a descoser. É preciso, então, que a
relação se faça à medida dos dois. Nas medidas dos dois. Dando o que não se
recebeu. Recebendo o que o outro não teve. Abrimos. Criamos novos traçados a
giz. Tornamo-nos alfaiates de nós. Um no outro. Abre-se para voltar a religar,
a coser, a bordar. A fio de ouro. A fita de cetim. Pois é deixando voar o que
tentámos proteger da falha, da dor da falha, que podemos desfazer a malha de
desafeto. Mas dói. Dói abrir. Armaduras e malhas de aço, antigas, têm que cair.
Fica-se exposto, vulnerável e em carne viva. Assolam os medos. Para ficarem à
flor da pele, para serem sacudidos. Transmutados. Para que caiam, é precisa
essa relação à medida. Para que mude o traçado, para que mude a história. Para
que se abra a vitrine e se soltem as asas.
Viemos ao mundo de braços abertos. Aprendemos a fechá-los. Fecha-se
o roupeiro. Esconde-se a chave. Insistimos em tentar abraçar de braços
cruzados. Porque dói. E depois existe, também aqueles momentos. Aqueles
momentos em que sentimos. Em que sentimos que dói mais andar de braços
cruzados. Do que de abraços abertos. Desfazendo câimbras e tendinites. Para nos
podermos abraçar. Abraçar o que foi desligado, o que foi descosido, o que foi
rasgado. Só é possível se abrirmos os dois os braços. Descobrindo chaves.
Deixando cair linhas laças e fios desgastados. Para que se bordem outros. Ponto
de cruz. Vão caindo máscaras. Mas será que basta uma única prova? Ou será antes
uma caminhada de abraços, cada vez mais à nossa medida, cada vez mais à medida
um do outro que nos vai preparando para abraçar quem somos? Bordado de uma
vida, ao qual se juntam cores e debruados. Na incerteza, sem repostas
(Hillman). Na incerteza do próximo ponto. Na certeza de que aprendemos a
vestir-nos. À nossa medida.
Roupa que se ajusta a nós, que segue as nossas formas. A
nossa essência. Que nos deixa respirar. Que nos deixa voar. A inocência é
acolhida de novo, em nós. Abrem-se as asas no decote das costas. De fadas, de
anjos, de pombas. Porque resgatamos peças soltas de nós e fizemo-las crescer ao
nosso tamanho. Porque só assim sabemos que podemos levantar voo e abrir os
braços. Sem cair. Passamos a saber pousar. Os percursos neuronais refizeram-se,
recoseram-se através do olhar do outro. Mudam-se respostas e circuitos
hormonais, altera-se o sistema imunitário (Gerhardt). Despem-se hábitos nocivos
e hábitos que nos escondem. Olhos que refletem as nossas medidas. Por inteiro. Linhas
invisíveis que nos levam ao encontro de nós. Até casa. Até às estrelas.
Roupa agora solta, fluida, que nos deixa sentir, correr,
brincar. Feita para nós e na medida do que que nos serve em cada instante. Do que
o corpo pede e do que a natureza e a terra indicam. Mais fresca ou que agasalhe
mais. Linho amarrotado ou flanela fofa. Lenços ou cachecóis. Chapéus de palha
ou gorros de lã. Descalços ou com calçado quente. Sempre em ligação. Por vezes
florimos e por vezes caem-nos as folhas. Deixando-nos tocar. Tocando. Sentindo
a textura e a temperatura do tecido. Da nossa pele. E é através deste tocar de
pele, toque empático e profundo, que podemos tocar o mundo. É recozendo o que
nos une que podemos despir a Terra da roupa sintética que veste o desencontro e
o desligamento. A mesma terra que nos liga e que nos religa. Bordando a várias
mãos.
Livros recomendados: “Why love matters” de Sue Gerhardt; “Re-visioning
psychology” de James Hillman.
por Ana Sevinate
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