(palavras)
“Cada coisa a seu tempo tem seu tempo.
Não florescem no inverno os arvoredos,
Nem pela primavera
Têm branco frio os campos.”
Ricardo Reis
Era uma vez um espaço. E era uma vez um tempo. O espaço era
feito de paredes, portas e janelas. O tempo era feito de estrelas cadentes, do escuro
da noite e de caudas de cometas. Viviam em terras muito distintas e muito
distantes. Mas às vezes encontravam-se. A bordo de um navio transatlântico ou à
esquina de uma galáxia. Falavam das últimas noticias do Universo e jogavam à
batalha naval. De vez em quando expiravam um suspiro profundo. Nenhum deles
perguntava porquê. Simplesmente entendiam o suspiro. Um do outro. Simplesmente
o escutavam, o sentiam e o inspiravam.
O tempo entendia que o espaço às vezes achava que era
apertado. O espaço entendia que o tempo às vezes sentia que era demais. O espaço
achava que era apertado quando alguém trancava a porta à chave ou quando alguém
não abria as portadas das janelas para deixar a luz entrar. O tempo sentia que
era demais quando alguém não sabia o que fazer com a sua vida ou quando alguém
demorava muito tempo a chegar. E suspiravam e entendiam. E jogavam mais uma
partida de batalha naval: “F4” dizia o espaço, “hidroavião ao fundo” dizia o
tempo.
Foi num dia de mau tempo e de tremor de terra que o espaço e
o tempo se encontraram ao balcão de um satélite. Entre refrescos e pastelaria,
a trovoada caía e a terra tremia. E o espaço e o tempo desabafaram. Cada um deles
disse o que os afligia e o outro já sabia. E entendia. E sentia. E foi então
que maquinaram os dois um plano. O espaço iria arrancar portas e janelas com a
ajuda dos vendavais. O tempo iria colocar todas as pessoas e todas as respostas
na mesma sala, sem partidas nem chegadas, nem dúvidas existenciais. Com a ajuda
das constelações. E assim foi.
Foi assim que casas, prédios, escolas, fábricas, quintas e
lagares se viram sem persianas, caixilharias, vidros, tábuas, maçanetas e
fechaduras. E foi assim que voaram segredos, documentos, tabuadas, parafusos,
galinhas e caroços de azeitona. Foi assim que toda a gente deixou de tocar à
campainha e de correr os cortinados. Foi assim que toda a gente deixou de poder
brincar às escondidas e de poder cantar no duche. Foi assim que toda a gente
deixou de conseguir limpar o pó e de arrumar as bolachas na despensa.
Foi assim que todos os seres vivos foram postos numa enorme
sala do tamanho do mundo. E nessa mesma sala foram colocadas todas as respostas
às suas perguntas. Já ninguém esperava por ninguém. E já ninguém tinha
incertezas. E foi assim que deixaram de se enviar postais, flores, mensagens e e-mails.
Foi assim que deixaram de aterrar aviões e de se dar abraços. Foi assim que as
flores passaram a estar sempre em botão, sem poderem desabrochar. Foi assim que
toda a gente deixou de sentir curiosidade. Foi assim que ninguém já ouvia o
coração a palpitar. Foi assim que as meninas dos olhos deixaram de brilhar.
E foi, então, assim que o espaço e o tempo suspiraram mais
profundamente do que nunca. E entenderam melhor do que nunca e melhor do que
ninguém. E foi assim que pagaram horas extra aos vendavais e às constelações
para os ajudarem. A pôr ordem nas coisas, a pôr as bolachas na despensa, a pôr os
postais no correio e a pôr o brilho no olhar. E foi assim que se voltou a ouvir
a tabuada e a cheirar o azeite. A ver alguém como se fosse a primeira vez. A
tocar a esperança de um futuro incerto. A provar a doçura de uma surpresa ao
entardecer.
E foi também assim que o espaço e o tempo passaram a pregar
partidas. Às vezes abriam uma fresta da janela e uma borboleta entrava. Às
vezes escondiam a chave da porta para alguém poder regressar. Às vezes
desorientavam alguém para se perder e encontrar outro alguém. Às vezes
escreviam a grafite a direção a seguir ou o caminho a tomar. E foi assim que os
vendavais e as constelações tiveram que passar a trabalhar por conta própria. E
foi assim que o espaço e o tempo deixaram de suspirar. E foi assim que passaram,
realmente, a entender.
por Ana Sevinate
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