14/12/2018

a menina da saia cor de fósforo


(sentires)



Eu vejo o céu quando eu te vejo, Dulcineia!
E o teu nome é como uma oração.
Um anjo sussurra... Dulcineia. “

in D. Quixote
Miguel de Cervantes


Acende-se o fósforo*. Chama sem fronteiras. Sem forma. De todas as formas. A alma está cá fora. O coração está cá fora. A mente está cá fora. A pele não limita. Recebe e foi feita para receber. Tudo. Impressões. Perfumes. Informações. Cores. Sentires. Palavras. Imagens.

O que está lá dentro salta à vista. Transparência. Difunde-se. Espalha-se. Dá-se. Osmose. Porque a emoção do outro trespassa-a. Todos os sentires são sentidos. Todos os sustos são de fazer saltar o coração. Ao peito. Coração minhoto, está também no fio. Ao colo. Coração minhoto, está também na saia. No lenço dos namorados, está sem dúvida na pele. Sente com as pontas dos dedos e voa com a ponta das pestanas. São asas de borboleta.

Sente com a ponta do lápis e em bicos dos pés. Arte. Força de criação que também invade sem pedir licença. Que nutre. Que desenha flores no chapéu. Que esculpe bailarinas no barro. A inspiração e o luar tocam-na ao de leve. E é o suficiente para o sol se apaixonar.

Fininha. Luz que acende um castelo inteiro. Luz que acende uma floresta inteira. Luz que acende um horizonte inteiro. Fica-se preso nos seus olhos. Vivos. Inocentes. Vive na terra do nunca. Menina eterna.

Volátil. Imensa e pequenina. Doce e implacável. Arrebatadora e livre. Amor impossível. É sempre mais seguro. É o único que não sufoca. Sim, porque quase tudo sufoca quando se sente o mundo nos pulmões.

Intensa. De repente tudo se torna demais. Demais. Soprou-se o fósforo e apagou-se a chama. E com a chama foram-se as paixões. Esconde-se o sol. Perde-se o coração do fio e perde-se o coração da saia. Perde-se nos sentires dos namorados e nos sentires de toda a gente. A menina.

Confunde-se. Menina, o que é que te pertence afinal? Não sei. Menina, e o que é que não é teu afinal? Não sei. Sei que recebi tudo e porque senti tudo dei tudo. Como se estivesse tudo ampliado. À lupa. Estremecem as células de cada vez que alguém grita uma palavra. Ondulam os fios do cabelo de cada vez que alguém se demora.

Agrada. A tudo e a todos. É o destino de quem sente o sofrimento de tudo e de todos. E quando se agrada sempre, perde-se o coração do fio e perde-se o coração da saia. Perdem-se as fronteiras. Da identidade.

E com as fronteiras perdem-se também as raízes. De onde és menina? Sou de todos os lados e não sou de lado nenhum. Porque avancei com a força do fogo e com isso perdi a terra. Perdi-me no ar. Foram as asas da borboleta.

Dependente. Está escuro agora. Esgotou-se a chama. E com o escuro vem o medo. O medo que alguma coisa má aconteça. A si. Aos seus amores. Perdeu-se o ar e apagou-se o fósforo. É melhor nem respirar, para não sentir. Precisa de não estar só. Falta o ar.

Dualidade. Às vezes segue e às vezes foge. Mas arranca-se sempre. De repente, quando tudo é vida e tudo é chama. Para depois passar tudo a doer. Terra do nunca, sem fronteiras e sem raízes.

Qualquer passo em direção ao horizonte vem de mãos dadas com o medo. De trovoadas. De perder. Separar é perder. E perder é perder-se a si. E perder-se no outro é não conseguir respirar.

Movimento romântico. Menina dama. Das Camélias. Alvas. Sonhadoras.   

Ai menina, se tu soubesses que é na roda da saia que ganhas a dança. Que nessa distância que há entre a roda e o teu par, podes continuar a ser menina e podes passar a ser mulher. Por isso salta e vem para a roda.  

O resgate faz-se na roda menina. Por isso salta e vem para a roda. Rodopia. Vai e respira. Volta e ilumina. E enquanto isso a saia roda. E enquanto isso o coração da saia é de todos. Mas enquanto isso o coração do fio é só teu. É essa a tua fronteira. É essa a tua pele. E porque já tens fronteira, já podes saber quem és. E quando souberes quem és, já não terás medo da noite.

E quando já não tiveres medo da noite, terás raiz.

Por isso salta menina. Vem para a roda.


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* phosphorus – utilizado em homeopatia, é um remédio obtido a partir do fósforo, um mineral branco inflamável em contacto com o oxigénio; o seu nome é de origem grega e significa “que dá a luz”.




 por Ana Sevinate
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4 comentários

  1. Nítido - Sentido - Luminoso !!!

    obrigada :)
    pode continuar a inspirar-se em outros remédios e brindar-nos com as suas imagens

    FESTAS FELIZES :)

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    Respostas
    1. Muito obrigada!!!!!!
      Está outro remédio a caminho :)
      Umas Festas Felizes também para si, com um beijinho imenso.

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