(sentires)
a todos nós, que somos também Outono
A neblina espreita por detrás de uma cortina rendada.
Cheirou-lhe a bolo de laranja. Com calda. Feliz, desenha uma estrela na janela
embaciada. Quanto mais a chuva se faz ouvir, mais as folhas se escondem.
Debaixo das mantas. Mantas feitas de terra. Onde dormem um sono profundo. Feito
da esperança da qual nascem as sementes.
Abrigam-se as corujas, migram os bandos e dormem os
sonhos.
Mas e se o tempo de ficar na terra, na nossa terra, acontece
numa daquelas madrugadas quando ainda não chegámos a casa? À noitinha. Sem chá,
sem doce abóbora e sem visitas. Sem chão. Chão de madeira. Sem tapete fofinho.
Sem a fogueira lá fora que às vezes aquece demais. Sem o cheiro da terra molhada. Da nossa terra molhada. Sebes de jardim, vasos com rosas, teclas de piano.
Porque transplantámos raízes. Ou porque as deixámos em
qualquer outro lugar. Ou porque as deixámos em qualquer outra pessoa. Ou porque
tinham que ficar. Ou porque tinham que partir.
Bocejam os esquilos por entre migalhas de avelãs e de bolotas.
Suspiram os gatos à lareira. De barriga para cima. De patas enroladas. Acendem-se
as luzinhas dos bosques. Mil e uma. Noites.
Mas e se para não afundarmos, precisarmos de ir ainda mais fundo? Cheirar
a terra. Inalá-la. Mais ainda. Senti-la no corpo. Mais ainda. Aprofundá-la na
pele. Mais ainda. Aos seus cantos e recantos. Agarrar-lhe a alma. Mais ainda. E de lá, soprar
uma chama e ler uma história. Inspiração.
Suavizam-se os prantos. Resgatam-se os pedacinhos. Nutrem-se
as asas.
Se transplantámos raízes, que estas possam ter tempo de
estranhar a terra. Que possam ter tempo para pernoitar no seu cantinho escuro. Esconderijo.
Que possam ter tempo para descoser medos e alinhavar desejos. Entrançando
curas. Quietinhos. Sussurrando canções de embalar. Sem vergonhas.
Estranham a terra. E, devagarinho, respiram-na. Para, mais
tarde, se entranharem dela. Ao encontro de uma outra raiz. Que às vezes faz
cócegas e que vai dizendo “eu estou aqui”.
Caem gotas. Condensação. Expiração. Cai uma lágrima. Por
entre migalhas de avelãs e de sorrisos. E quando demos por isso já se encheu a casa.
Encheu-se a toca da árvore. E encheu-se o bater do coração.
Com o cheiro de terra molhada.
por Ana Sevinate
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