01/05/2017

a nossa casa


(sentires)

Mudamos. Mudamos de casa. Às vezes de bairro, às vezes de cidade, às vezes de país. Até de continente. Às vezes sentimos que deixamos raízes para trás quando partimos, outras vezes sentimos que vamos à procura delas noutro lugar qualquer. Seja de que forma for, o chão abana e a terra remexe de cada vez que partimos e de cada vez que chegamos. Vem o novo e com o novo vem o desconhecido e com o desconhecido vem o medo. Perde-se o norte e falta-nos o ar.

Tal como as árvores a caminho do transplante, existe aquele tempo em que as raízes ficam soltas, à vista, sem o aconchego e sem o escuro da terra. A angústia de querer voltar ao lugar da partida invade. Depois, um chão que não se conhece. A terra tem um sentir, uma textura diferente, não se sabe o que habita no escuro do solo, não se conhecem os ciclos da terra, nem os hábitos do clima. Haverá água suficiente? Haverá luz suficiente? Haverá por aqui alguma coisa que me possa fazer mal? De onde venho a terra é seca demais, o vento sopra forte demais, mas já sei que é assim, já sei o que esperar, já sei como lidar.  

Enfim, o que faço eu aqui? E, quando fazemos esta pergunta, o que nos aflige? São as paredes pintadas de outra cor? A língua que os outros falam e que não entendemos? A comida que tem um sabor diferente? Recordarmo-nos ajuda. Passamos então a cantar mais as nossas raízes, a dançar as nossas raízes. Pintamos a luz das nossas cidades. Usamos objetos que contam histórias antigas. As nossas e as dos nossos antepassados. A nossa cultura e a nossa ancestralidade correm-nos nas veias e, assim, mesmo que hajam coisas com as quais não nos identificamos ou que rejeitemos com unhas e dentes nossas células também palpitam quando reconhecem ecos familiares.

O que faço eu aqui? Ou será esta também uma pergunta que fazemos mesmo quando não mudamos de lugar? Sempre que perdemos o norte, sempre que nos perdemos de nós. Sempre que a vida faz uma pirueta. Sempre que assistimos às dores do mundo e do planeta. E se nos apercebêssemos que o nosso corpo é a nossa casa e a nossa raíz? E se as nossas referências estiverem nas nossas células, nos nossos órgãos, no nosso sorriso, nos nossos gestos? E se é verdade que os nossos gestos também mudam, o que está à nossa volta muda também com eles, num diálogo profundo, num movimento compassado e recíproco. E se também for o corpo o que nos liga, enquanto raíz que é? Pois é através das raízes que as árvores comunicam. E se através do corpo acedemos ao inconsciente, dos outros, de tudo. Liga-nos mesmo à distância. E se não existir uma divisão clara entre o dentro e fora? (Mindell)

É o corpo que acolhe a nossa essência e por isso somos indissociáveis dele. Habitar-nos é habitarmos o nosso corpo. Se os nossos sonhos são os sonhos do mundo, aquilo nos aflige e que aflige o nosso corpo, são também os problemas do mundo. O desenraizamento que vivemos será porque nos desligamos do chão em que estamos plantados? Porque não reconhecemos o mundo. Porque deixámos de ouvir a terra. Sim, porque a terra, em si mesma, fala. As pedras, os rios, o horizonte é aquilo que sempre existiu, que dá continuidade à nossa existência. Falam, por isso, de nós, guardam as nossas memórias, guardam as nossas histórias. Porque “aqui só pode haver conversas em que também a paisagem participe, em toda a sua diversidade e com as suas mil cores.” (Rilke) E de cada vez que habitamos mais o nosso corpo, mais habitamos a relação com o outro, mais habitamos a relação com a Terra. Voltamos a ser flores do campo, cansados, por fim, de ser flores de estufa.

Tal como as histórias do mundo, se vivem, se sentem, através do corpo, não será através dele que também se cicatrizam? No seio de cada cultura. Cantando-as, pintando-as, esculpindo-as, dançando-as. Plantando-as. Contando histórias. Semeando. A saudade cantada no fado, o desamparo abraçado no tango, a nostalgia do campo recitada na poesia, as cores dos tempos pintadas a aguarela ou a óleo, as vicissitudes humanas encenadas no teatro. Cantando, dançando, recitando, pintando, encenando as nossas raízes.

Habitar o corpo. Habitar os espaços onde vivemos à semelhança do nosso corpo, e progressivamente, os espaços que envolvem esses espaços, o planeta e o universo. E se, assim, as nossas raízes andassem sempre connosco? Gravadas nas nossas memórias e nos nossos sentidos. Como que num vasinho. E quando mudamos efetivamente de lugar e, nos falta o ar, é a ele que podemos recorrer. Regressando aos sentidos. Inspirando e expirando.

Sentindo o vento, o sol e a chuva. Tocando na terra. Nunca ignorando que as nossas histórias têm uma palavra a dizer na forma como nos habitamos, como nos enraizamos ou como perdemos as coordenadas de nós mesmos. Desde, à ansiedade, à angústia, à tristeza até à perca do sentido de realidade e do sentido do eu. Por isso mesmo, se mudamos efetivamente de lugar, e tivermos essa oportunidade, dêmo-nos tempo para fazer as malas. Desatando os laços devagarinho, levantando as raízes uma a uma. Passando para um vasinho. Até ao próximo poiso.



Livros recomendados: “Working with the dreaming body de Arnold Mindell, Lao Tse Press; “Viagem singular a Worpswede” de Rainer Maria Rilke, Feitoria dos livros



por Ana Sevinate


SHARE:

2 comentários

  1. Deixas-me sem palavras capazes de falar e escrever a tão beleza do teu texto e de quem És <3 <3 <3 Grata

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Obrigada querida Ana. Pela inspiração do teu exemplo. Pela tua PRESENÇA. Que, assim, vamos conseguindo, aos bocadinhos, alcançar-nos uns aos outros, dizer-nos uns aos outros que "está tudo bem" :) <3

      Eliminar

© Histórias de Raiz . All rights reserved.