(palavras) (cinco sentidos: olfato)
“Agora que sinto amor
Tenho interesse no que cheira. “
Alberto Caeiro
Era uma vez um perdigueiro. Como todos os perdigueiros,
tinha um nariz. Como todos os perdigueiros, tinha um nariz que dizia “segue,
vai, não olhes para trás”. Um nariz que indicava a direção. Que sentia o aroma
das cores e das sombras. Que fazia com que levantasse uma das patas da frente e
ficasse em forma de flecha. Pronta a disparar. De um arco com grande pontaria.
Corpo reto. Pelo da cor do mel de alfazema. Músculos
atléticos. Ombros alinhados. Risca alva na testa no sentido do horizonte. Coração
grande. Olhos docemente determinados. Orelhas caídas. Moldadas ao vento. Aveludadas.
Nariz à frente e no comando: “é por ali”. Antes do disparo. Antes da corrida.
Velozmente. Convictamente. Sem dúvidas. O cheiro da terra molhada. Um trilho.
Um rasto. Uma voz. Um afeto. Era por ali. E fosse o que fosse, lá ia ele. Entregava-se.
Ao seu nariz. Sem pestanejar.
Um dia, um estalido maior, fez lembrar o início de uma
tempestade, não se sabe de onde. O apocalipse, parecia. Um susto. A meio do
caminho, guiado pelo seu nariz. O coração saltou para fora do peito. O
perdigueiro escondeu-se. E a partir daí, sempre que o seu nariz puxava e apontava,
o perdigueiro travava. A fundo. Até fazer esvoaçar pó da terra. E afincava as
quatro patas no chão. Como que quatro grandes raízes antigas e teimosas. O seu nariz
insistia e ele recusava. Resistia. E pouco a pouco foi aprendendo a ir na
direção oposta. Do seu nariz.
Dizia-lhe: “segue, vai, não olhes para trás”. E o
perdigueiro dava meia volta. Dizia-lhe “é por ali”. E o perdigueiro virava
costas. Gerou-se a confusão. O nariz dizia uma coisa. A memória de um susto
dizia outra. Um dizia “alhos”. A outra dizia “bugalhos”. O coração do
perdigueiro ficou confuso. Atrapalhado. Perdido. Perdera a confiança no nariz.
A sua lealdade pertencia agora ao susto. À memória do susto. Porém, esta não
indicava coisa nenhuma. Não guiava. Não puxava. Não dava sentido. Simplesmente
dizia para onde não ir. Para não ir atrás do seu nariz.
Ia para trás ou para a frente? Para cima ou para baixo? Na
direção do monte ou da seara? Para perto ou para longe? A solução era não ir a
lado nenhum. Era mais seguro. Orelhas, agora, abandonadas. Era uma flecha sem
arco. E sem alvo. Perdera o seu foco. E perdera a sua bússola. Mas o coração do
perdigueiro sentia a determinação do nariz. De cada vez que se franzia.
Persistência. Vontade. Chamava-o. O cheiro do apelo. A curiosidade estava mais
desbotada, mas ainda vivia. O amor pela descoberta falava com uma voz quase
afónica, mas ainda vivia.
E foi ao nascer do sol de um outro dia, entre deambulações,
que se cruzou com um outro perdigueiro. Novo por aquelas bandas. Olhos doces.
Pelo da cor do mel de alfazema aclarado pela luz do sol. E pelo tempo. Risca da
testa mais alva. Um outro perdigueiro, que entendeu o que tinha acontecido. Escutou
o seu silêncio. E recordou-se do seu próprio susto. A meio do caminho que o seu
nariz lhe tinha indicado. Era aquilo que sabia ser uma iniciação. Pela qual
passavam todos os perdigueiros. Quando seguir o nariz passa a ser decisão. Tinha
chegado o seu momento de passar testemunho. De perdigueiro para perdigueiro. Disse-lhe
então: “ouvi dizer que o teu nome é Coragem. “
Um sorriso angustiado respondeu “sim, irónico, não é? “. “Não,
não é”. “Coragem é decidir deixar-se guiar pelo faro. Para além dos sustos.
Sabendo que eles existem. Seguindo o rasto das suas pegadas. “E conduziu-o até
uma grande árvore. E sentaram-se os dois. Frente a frente. Viram-se nos olhos
um do outro. Doces. E o perdigueiro que tinha a risca mais alva colocou uma
pata na testa do perdigueiro chamado Coragem e solenemente, aclamou: “Que o
faro cheire o perigo, mas que o perigo não pare o faro. E que o perigo não
baralhe o coração. “ E colocou um fio no pescoço do Coragem. E nesse fio estava
uma pedrinha onde estava escrito “sigo-me”. E ambos fizeram uma vénia em sinal
de reconhecimento. E deram ambos por concluído o ritual.
E o perdigueiro da risca mais alva seguiu placidamente o seu
caminho. E o perdigueiro chamado Coragem ficou mais um bocadinho debaixo da
grande árvore. E deitou as patas dianteiras no chão e cheirou o aroma da erva
fresca. E o aroma da sabedoria atarefada das abelhas. E o seu coração regressou
a casa. Já sabia onde estava. E cheirou também o aroma do fio que lhe tinha
sido oferecido. E seguiu-o.
por Ana Sevinate
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