26/06/2017

o silêncio das palavras


(sentires)

Escuta. Pacientemente. Espera. São teclas de um piano? Cordas de uma lira? O sopro do vento nas asas de um falcão? São pérolas de um colar quando se cumprimentam umas às outras, educadamente? São palavras? Não. São os intervalos. Entre teclas, entre cordas, entre bater de asas, entre sons. Entre palavras. A distância entre elas. Os espaços e os tempos entre elas. Vazios? Não. Repletos de interlúdios que acompanham o fechar do pano. Antes do próximo ato. Repletos também da interpretação da sua própria musicalidade. Sim, porque existe música no silêncio. E existe música na ausência. 

Escutamos habitualmente ao som de histórias gravadas em cassete, letras de canção que conhecemos de cor e salteado. E se escutássemos antes ao som da paciência? Esse dom que nos faz ficar imóveis, quietos, no mesmo lugar, curiosos e relembrando o quanto queremos escutar. Escutar o que que quer que soe. Abrindo os ouvidos a novos acordes. A novas palavras. Porque as dádivas são encontradas tal como encontramos os falcões numa floresta: encontramos, mas não com frequência e não podemos escolher nem quando nem como (Mcdonald). Vêm até nós.

É preciso, pois, escutar com atenção. Sem movimento. Sem balanços do corpo. Sem agitações da mente. Sem dores de alma. Pestanejando pouco. Respirando sempre. Escutando as divisões métricas das palavras, os compassos. Em compasso de espera. Porque o sentido das coisas é ecoado, cantado, tocado assim. Nos silêncios. Não só nos contrapontos. Não só nas sinfonias. Mas também no que separa. No que separa a duração das semibreves, das mínimas e das colcheias. Ainda que doa. Ainda que as inquietudes, as dúvidas e os medos antigos insistam em entrar sem dizer “com licença”. Quando o silêncio traz consigo a sombra do abandono. Ainda que as palavras, novas agora, insistam em firmar a sua privação. O seu roubo. Porque é quando elas se calam, que se ouve o bater do coração. Porque “sopra ao ouvido, o sopro do coração. “ (Clã).

A palavra toca centros, núcleos. Faça-se esse elogio. Faça-se esse reconhecimento. E faça-se essa homenagem. É imperioso. Tal como uma nota musical, afinada ou desafinada, intensa ou macia, aguda ou grave. Fere e reaviva velhas feridas. Toca dissonâncias, instabilidades. Cicatriza e cura também. Toca consonâncias, harmonias. Abre portas. À imagem de um Orfeu que encanta e tenta, com a sua música, resgatar da morte. Não só a palavra que escutamos, mas também a palavra que falamos, a palavra que dizemos e a palavra que cantamos. É a chave para deixar que o outro entre em nós. É a chave para nos deixarmos entrar no outro. Abrindo o que foi fechado, gritando o que foi calado. Encontrando o que foi perdido.

E se o espaço entre as palavras não fosse a chave, mas a própria porta? Para o resgate. E se o silêncio fosse o momento do encontro? E se a distância fosse aquilo que torna possível a presença? E se Orfeu tivesse compreendido que é no solfejar, na possibilidade e na arte de cantar os intervalos, os silêncios, que se renasce? Porque só se morre de amor quando há entrega. Porque passámos de ser um para sermos dois. E só sendo dois podemos voltar a ser um. Entrega, separação, entrega. E sem perda não há reencontro. E sem separação não há intimidade. Porque é em cada perda, em cada afastamento, em cada silêncio que a relação se transforma, se reinventa e se reaproxima. Mais. Numa relação em que a permanência, um no outro, se constrói. Para além da presença. Na confiança de que outro nos levou consigo.

E é na integração da morte e da vida, na perda e do reencontro, da separação e da união, que se compõem partituras feitas de diálogo. De escalas melódicas. Onde se diz o que se sente. Sem medo de sair do tom. Onde se pousa na voz um do outro. Onde se desfaz o nó na garganta. Onde dizemos o que nos faz cantar. Onde dizemos o que nos faz calar. O que nos faz sussurrar e o que nos faz chorar. Dessa integração nascem pausas cada vez menos vazias. Cada vez menos sujeitas a interpretações. Cada vez mais audíveis e sonoras. Cada vez mais compreensíveis e compreendidas pelos dois. Afinando. Reparando.  

E no início veio o gesto, espontâneo e imediato. Antes da palavra. Através do qual o corpo responde à experiência sensorial e expressa sentimentos. Entendido também através do corpo, para além da língua. No franzir de um sobrolho. No abrir do peito.  No brilho do olhar. No entrelaçar de duas mãos. Expressão do afeto através do corpo. Porque o significado comunicativo é afetivo na sua essência. E o discurso vivo é a composição desse gesto vocal. Onde o som, o tom, a força e o ritmo da palavra são indissociáveis do seu significado (Abram). Onde o som, o tom, a força e o ritmo do silêncio são inseparáveis da sua preciosidade.

E se nas outras formas de existência não existe linguagem, na sua dimensão abstrata, existe com certeza o gesto. Sim, na natureza a comunicação faz-se através do gesto. O som do vento soa diferente em cada forma de bater as asas. E entre gestos, há intervalos, há compassos de espera, há solfejos. Há silêncios. Nunca vazios. É preciso pois escutá-los também. O silêncio antes do brotar de um rebento. Porque existe essa linguagem que é tão comum a todos os seres vivos. Onde não existem diferenças. De afetos. E se nos esquecermos dela, façamos então pois um minuto. Um minuto de silêncio. E depois reaprendamos a falar. A cantar. A escutar.      



Livros recomendados: “H is for Hawk” de Helen Macdonald; "The spell of the sensuous” de David Abram.

Música recomendada: “O sopro do coração” interpretada pelos Clã, letra de Sérgio Godinho e Hélder Gonçalves.



por Ana Sevinate
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