(sentires)
Escuta. Pacientemente. Espera. São teclas de um piano? Cordas
de uma lira? O sopro do vento nas asas de um falcão? São pérolas de um colar quando
se cumprimentam umas às outras, educadamente? São palavras? Não. São os
intervalos. Entre teclas, entre cordas, entre bater de asas, entre sons. Entre
palavras. A distância entre elas. Os espaços e os tempos entre elas. Vazios? Não.
Repletos de interlúdios que acompanham o fechar do pano. Antes do próximo ato. Repletos
também da interpretação da sua própria musicalidade. Sim, porque existe música
no silêncio. E existe música na ausência.
Escutamos habitualmente ao som de histórias gravadas em
cassete, letras de canção que conhecemos de cor e salteado. E se escutássemos
antes ao som da paciência? Esse dom que nos faz ficar imóveis, quietos, no
mesmo lugar, curiosos e relembrando o quanto queremos escutar. Escutar o que
que quer que soe. Abrindo os ouvidos a novos acordes. A novas palavras. Porque as
dádivas são encontradas tal como encontramos os falcões numa floresta: encontramos,
mas não com frequência e não podemos escolher nem quando nem como (Mcdonald). Vêm
até nós.
É preciso, pois, escutar com atenção. Sem movimento. Sem
balanços do corpo. Sem agitações da mente. Sem dores de alma. Pestanejando pouco.
Respirando sempre. Escutando as divisões métricas das palavras, os compassos. Em
compasso de espera. Porque o sentido das coisas é ecoado, cantado, tocado assim.
Nos silêncios. Não só nos contrapontos. Não só nas sinfonias. Mas também no que
separa. No que separa a duração das semibreves, das mínimas e das colcheias. Ainda
que doa. Ainda que as inquietudes, as dúvidas e os medos antigos insistam em
entrar sem dizer “com licença”. Quando o silêncio traz consigo a sombra do abandono.
Ainda que as palavras, novas agora, insistam em firmar a sua privação. O seu
roubo. Porque é quando elas se calam, que se ouve o bater do coração. Porque “sopra
ao ouvido, o sopro do coração. “ (Clã).
A palavra toca centros, núcleos. Faça-se esse elogio. Faça-se
esse reconhecimento. E faça-se essa homenagem. É imperioso. Tal como uma nota
musical, afinada ou desafinada, intensa ou macia, aguda ou grave. Fere e
reaviva velhas feridas. Toca dissonâncias, instabilidades. Cicatriza e cura
também. Toca consonâncias, harmonias. Abre portas. À imagem de um Orfeu que
encanta e tenta, com a sua música, resgatar da morte. Não só a palavra que
escutamos, mas também a palavra que falamos, a palavra que dizemos e a palavra
que cantamos. É a chave para deixar que o outro entre em nós. É a chave para
nos deixarmos entrar no outro. Abrindo o que foi fechado, gritando o que foi
calado. Encontrando o que foi perdido.
E se o espaço entre as palavras não fosse a chave, mas a
própria porta? Para o resgate. E se o silêncio fosse o momento do encontro? E
se a distância fosse aquilo que torna possível a presença? E se Orfeu tivesse
compreendido que é no solfejar, na possibilidade e na arte de cantar os
intervalos, os silêncios, que se renasce? Porque só se morre de amor quando há
entrega. Porque passámos de ser um para sermos dois. E só sendo dois podemos
voltar a ser um. Entrega, separação, entrega. E sem perda não há reencontro. E sem
separação não há intimidade. Porque é em cada perda, em cada afastamento, em
cada silêncio que a relação se transforma, se reinventa e se reaproxima. Mais. Numa
relação em que a permanência, um no outro, se constrói. Para além da presença. Na
confiança de que outro nos levou consigo.
E é na integração da morte e da vida, na perda e do
reencontro, da separação e da união, que se compõem partituras feitas de
diálogo. De escalas melódicas. Onde se diz o que se sente. Sem medo de sair do
tom. Onde se pousa na voz um do outro. Onde se desfaz o nó na garganta. Onde dizemos
o que nos faz cantar. Onde dizemos o que nos faz calar. O que nos faz sussurrar
e o que nos faz chorar. Dessa integração nascem pausas cada vez menos vazias. Cada
vez menos sujeitas a interpretações. Cada vez mais audíveis e sonoras. Cada vez
mais compreensíveis e compreendidas pelos dois. Afinando. Reparando.
E no início veio o gesto, espontâneo e imediato. Antes da
palavra. Através do qual o corpo responde à experiência sensorial e expressa sentimentos.
Entendido também através do corpo, para além da língua. No franzir de um
sobrolho. No abrir do peito. No brilho
do olhar. No entrelaçar de duas mãos. Expressão do afeto através do corpo. Porque
o significado comunicativo é afetivo na sua essência. E o discurso vivo é a composição
desse gesto vocal. Onde o som, o tom, a força e o ritmo da palavra são
indissociáveis do seu significado (Abram). Onde o som, o tom, a força e o ritmo
do silêncio são inseparáveis da sua preciosidade.
E se nas outras formas de existência não existe linguagem,
na sua dimensão abstrata, existe com certeza o gesto. Sim, na natureza a comunicação
faz-se através do gesto. O som do vento soa diferente em cada forma de bater as
asas. E entre gestos, há intervalos, há compassos de espera, há solfejos. Há
silêncios. Nunca vazios. É preciso pois escutá-los também. O silêncio antes do brotar
de um rebento. Porque existe essa linguagem que é tão comum a todos os seres
vivos. Onde não existem diferenças. De afetos. E se nos esquecermos dela, façamos
então pois um minuto. Um minuto de silêncio. E depois reaprendamos a falar. A cantar.
A escutar.
Livros recomendados: “H is for Hawk” de Helen Macdonald; "The
spell of the sensuous” de David Abram.
Música recomendada: “O sopro do coração” interpretada pelos
Clã, letra de Sérgio Godinho e Hélder Gonçalves.
por Ana Sevinate
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