(palavras) (elemento terra)
Era uma vez um medo que se infiltrou num cogumelo. Para
poder crescer em terra húmida e bolorenta. Para poder crescer sem raízes. Para
poder crescer em todo lado. Nos campos, nas janelas dos carros antigos e na
comida esquecida na dispensa. Pé ante pé e com pezinhos de lã infiltrou-se.
Escavou, construiu uma gruta e ficou lá a morar. Gostou, sentiu-se em casa.
Criou uma moda. O medo de nos perdermos aderiu. O medo de ficarmos sozinhos
aderiu. O medo de não conseguirmos também. O medo do escuro, o medo de dizer
asneira e o medo de fazer más figuras. Todos os medos passaram a morar em
cogumelos e, assim, se espalharam rapidamente. Pelos bosques, pelas varandas,
pelos cestos de piquenique. Não havia cogumelo onde não houvesse medo que
espreitasse. Espalharam-se pelo mundo, infiltrados. Disfarçados de cogumelos.
Os cogumelos protestaram. Não gostaram da ideia de serem
confundidos com medos. Houve um cogumelo espevitado que tomou o lugar da
frente. Liderou o protesto. Distraiu o medo que vivia dentro de si. A ele
tinha-lhe calhado o medo das alturas. Logo ele, que tinha nascido e crescido
bem lá no alto do cume de uma montanha. Depois encheu o peito de ar. Esticou o
seu pé de cogumelo e inclinou ligeiramente o seu chapéu de cogumelo e espreitou
o sol. Mandou o seu medo ir espreitar o que se passava lá em baixo. Tinha
ouvido dizer que estavam a construir empreendimentos turísticos para medos.
Feitas com torres múltiplas, cogumelos múltiplos, que nascem do mesmo pé.
A inspiração veio em forma de uma brisa, muito suave, que
lhe fez cócegas. Acendeu-se uma luzinha lá dentro e a luzinha ocupou a casa e o
espaço que eram do medo. “Já sei! “, clamou, e como tinha mandado o medo ir
passear, olhou para os rios no sopé da montanha. Convocou os cogumelos que
conseguia alcançar. A palavra passaria de cogumelo em cogumelo e chegaria aos
outros todos. Aos que viviam nas janelas dos carros antigos e aos que viviam
nos cestos de piquenique. O cogumelo declamou assim: “No mundo existe algo, não
é medo, nem é cogumelo, mas brota igualmente, simplesmente, espontaneamente,
por entre sopros por entre vontades, por entre profundezas, e por entre
claridades, é irmã do medo e brota da imaginação, singela iluminada, à desgarrada.
“
Todos os cogumelos compreenderam. O cogumelo poeta
referia-se, nem mais nem menos, do que à ideia. Sim, as ideias, tal como os
medos, são como cogumelos. Os cogumelos compreenderam que, se a imaginação é na
sua raíz e na sua essência, espontânea e selvagem, as ideias, tal como os
medos, podem brotar nos bosques e nas despensas. Exclamaram “brilhante” e lá do
alto conseguiam ver-se as luzes espalhadas pela paisagem. Os medos não gostaram
muito da ideia de serem desalojados. Por isso tornaram-se nómadas, à espera de
uma casa vazia. Às vezes acontece quando uma ideia sai atrás da curiosidade e é
preciso seguir-lhe o rasto. Os medos voltam também sempre que é preciso
ficarmos quietos, corrermos para longe ou arreganharmos os dentes.
por Ana Sevinate
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