(sentires)
O medo de existir. É como andar sempre a pisar ovos. Quando
tudo o que fazemos, ou não fazemos, acorda o medo de existir. De avançar, de
dizer que não, de dizer que sim. Dentro de nós surgem “guardas” que não nos
deixam mexer um dedo. Dizem-nos que é errado. Protegem-nos do medo de sentir.
Protegem-nos do medo de magoar. Fazem-no dizendo que somos errados, ou que o fazemos
é errado. Ou que não somos capazes.
O que há a perder? Tudo. O chão. O risco é a autocrítica
severa. Castigamo-nos através da vergonha ou da culpa. Ficamos no mesmo sítio.
Porque é perigoso. Adia-se. Fica-se quieto. Porque seria diferente na relação
com o outro? Pisamos ovos também. Por vezes sentimo-nos demais ou, até mesmo, a
mais. Os outros pisam ovos conosco também. Como se nos fossemos partir ou como
se fossemos parti-los. Espelham-nos. Espelhamo-nos uns aos outros. Sente-se
demais. Decide-se: vou “criar gritos dentro de mim. Abro a boca e engulo todos
os sons que consigo. Depois, não os deixo sair”. (Afonso Cruz).
Por outro lado, sente-se mais o mundo. O mundo torna-se
demais. Ouve-se mais, vê-se mais. O desrespeito uns pelos outros leva-nos ao
limite. Pode ser uma ultrapassagem, um não olhar, um não “bom dia”. Ser humano
torna-se demais. Vem a zanga insuportável, intolerável. Aprendemos que é
condenável também. Então ficamos quietos. Engolimos sapos e engolimos em seco.
Dizemo-nos a nós mesmos que exageramos, que somos hipersensíveis. Acumulamos. Só
que ao engolirmos a zanga, a tristeza, a frustração, a separação, engolimos
também o sentido de realização, a alegria, a vontade, a conexão. Aprendemos que
é mais seguro assim, que é melhor assim, que somos mais bem comportados assim.
“Reprime-se o sublime”. Sim, porque o medo não é só o medo de se ser demais, é
também o medo de se ser mais. Ser mais quem somos.
Perder o medo implica ganhar. Ganhar chão. Pedra a pedra,
passo a passo. Ganhar estrutura. Ganhando confiança e a confirmação de que não
nos partimos, que não nos partem, que ninguém se parte. Sentindo que se alguém parte
(se afasta de nós) não é por merecimento nem falta de valor. É porque sim. Com
o direito de sentirmos a dor que essa perda traz. Conquistando segurança. A segurança de se merecer existir em cada passo. Deixando a
sombra entrar. Deixando a claridade entrar. Dizendo que não. Dizendo que sim.
Escolhendo. Conhecendo o medo que carregamos de longe. Reconhecendo e sentindo
a perda que é indissociável da escolha. Se se vai para um lado, perde-se o
outro, se se escolhe o azul, perde-se o amarelo. Criando confiança que o sublime
não queima. Sabendo que não é arrogante, prepotente ou inadmissível ser-se
mais. Ser mais quem somos.
O direito de sentir medo e zanga. Por não sermos vistos. Por
não termos sentido que merecemos existir. Desde quando é que os seres humanos
deixaram de se ver uns aos outros? Quando cada um de nós passou a olhar para um
objeto que nos põe em ligação com um outro que não está presente? Ou sempre foi
assim? Ou sempre lá esteve e o nosso mundo de hoje enaltece ainda mais essa
falta, essa dor, que é não sermos reconhecidos por quem está à nossa frente? Acicatando
dores antigas. Da história do mundo e da nossa própria história. Desde quando é
que os seres humanos deixaram de escutar o mundo à sua volta? À imagem daquilo
que fazem consigo mesmos. Olhar à nossa volta traz à luz a dor da realidade. Ao
não olhar, retira-se a possibilidade de reparar, de cicatrizar, de amparar, de
empatizar.
O que aprendemos a condenar é a espontaneidade. Por ser
perigosa. Com a espontaneidade, condenamos também a sabedoria e o que de bom
vem com ela. A desarrumação e a confusão são catalogadas de más e de
inaceitáveis (Totton). A zanga é, assim, também a zanga da domesticação.
Aprendemos a controlar, a analisar, a interpretar, a dissecar. Tornamos real a nossa
interpretação da realidade. Ao dissecar tiramos o sentido, por perdermos o
sentir. Procuramos o que é hermético, asséptico e em vácuo. O medo é o da falta
de controlo e por isso temos medo de tudo o que não é humano. Pisamos ovos de
aviário. E se a ética for natural à espontaneidade? E se o que chamamos de
“selvagem” é também a tendência, inata, para nos ligarmos? E se o que chamamos
de “selvagem” é também a tendência, inata, para sermos mais? E se “pensar uma
flor é vê-la e cheirá-la e comer o fruto é saber-lhe o sentido” (Alberto Caeiro)?
Livros recomendados: “Wild therapy: undomesticating inner
and outer worlds” de Nick Totton, PCSS Books; “O livro do ano” de Afonso Cruz,
Editora Objectiva
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