(palavras) (elemento ar)
Era uma vez uma pena de pavão e era uma vez um pavão que
tinha pena por tê-la perdido. A pena vivia solta pelo mundo, ao sabor das
correntes de ar, das brisas e das monções, aguardando o próximo sopro. Seguia
todas a direções, conheceu todos os pontos cardeais. A Rosa dos Ventos era uma
velha amiga. O pavão vivia desolado, amargurado. Sentia falta da sua pena.
Todos os dias contemplava o espaço vazio deixado por ela. Vivia também com
vergonha e por isso não mostrava a ninguém o seu leque. Vivia sozinho. Não
dormia em noites de ventania. À espera. À espera que um vento alísio qualquer
lhe trouxesse de volta a sua pena.
A pena recordava-se do seu pavão com nitidez. Pose direita,
porte altivo, andar confiante de quem sabe para onde vai. Mil olhos, em forma
de penas azuis e verdes, de quem tem orgulho em ser. Coroa no topo de cabeça
erguida com proeza. Beleza emplumada, afirmação majestosa. Grito divino. Pensava
no seu pavão e recordava as histórias que tinham vivido. Gostava de ver e de
ser vista do alto do leque. Era admirada pelos seus fios de seda cintilante. Porém,
não gostava de andar em forma de cauda, arrumada, escondida, apertada. Pensava
no seu pavão e sorria enquanto voava livre. Tinha voado inteira, com haste, com
raiz. Com orgulho de ter sido pena de pavão. Com orgulho de ser agora pena dos
ventos. Vendo o mundo do cimo dos postes de eletricidade e da tona da água de
um rio.
O pavão recordava a sua pena vagamente. Verde e azul. Fios
de seda. Olho sábio. Tesouro invejado. Preciosidade desejada. Recordação vaga, porém
com a certeza de que era a mais bela das suas penas, o mais enigmático dos seus
olhos. Olhava o espaço vazio. As outras penas tinham desistido de tentar
espreitar o mundo. Esforço inglório. Confinadas a viverem ao molho e carregadas
como um fardo de palha. Queria a sua pena. Ela tinha levado consigo um
bocadinho de si. O bocadinho mais belo, mais admirado e mais cintilante.
Um certo dia um ciclone passou. Levou a pena em remoinho. Ficou
tonta. Sentia-se uma bailarina em pontas. Piruetas sem fim. E muitas cocegas. O
frenesim e a inquietação da rapidez desconhecida. Um pé-de-vento. E depois
desaparece o vento, sem justificações, sem explicações. Deixando mil rastos. Um
deles, a pena que tinha sido de um pavão. Ainda desnorteada, baralhada, olhar
desfocado, vislumbra uma sombra. Uma sombra azul e verde. É familiar, faz
lembrar o seu pavão, parece transportar a mesma coroa. Mas não pode ser, é uma sombra
cabisbaixa, de olhos postos no chão. Com vergonha e à espera.
O pavão, que se tinha abrigado de confusões, vinha agora
espreitar o que tinha trazido o tufão e o vendaval. Sem grande força nas pernas
e nas penas, mas veio espreitar. A curiosidade não desapareceu, ficou por vezes
esquecida mas manteve-se intacta. A esperança também, às vezes sentia-a ao de
longe, às vezes parecia que se esfumava pelo ar, mas manteve-se intacta. Encontrou
ramos de árvore, uma estrela do mar, poeiras do deserto, um lenço bordado. Uma
joaninha estonteada, que falava sueco. E uma pena. Verde, azul, acetinada. Mas
não pode ser, está demasiadamente despenteada.
A pena tinha, entretanto, recuperado a sua visão profunda,
raio-x e supersónica. Conseguia sentir em cada um dos seus fios de seda que era
o coração do seu pavão. Um coração agora desolado e amargurado, mas era ele.
Alguma coisa tinha-se mantido intacta. A pena aproveitou então um soluço de
vento e saltou o mais alto que conseguiu. O pavão aproveitou mais um soluço de
curiosidade e escutou a pena que saltava estoicamente à frente dos seus olhos.
Não era a pena perfeitinha da qual se recordava, não era a mais bela nem a mais
cintilante. Mas era a sua pena. E a sua pena tentava agora perceber o que teria
acontecido ao seu pavão. A falta dela dizia-lhe ele, uma pena imensa por tê-la
perdido. És muito para além de mim dizia-lhe ela. És outras penas, és leque, és
cauda e coroa, és coração e és o teu grito. És também o espacinho que eu
deixei. O espacinho que conta as nossas histórias.
E de repente o coração do pavão desacelerou o passo, retomou
a sua música compassada, ritmada, pacificada de antigamente, só que agora com
um acorde extra. Sentia agora cada uma das suas penas plantadas em si. Ergueu-as.
E com elas ergueu também o espacinho deixado pela sua pena. Senhor de si e do
caminho a seguir. Todas as penas e todos os bocadinhos de si gritaram de
exaltação. E a pena de ter perdido a sua pena voou para longe. Em vento de
sudoeste. Tempos depois, no espacinho deixado pela sua pena, nasceu uma outra,
azul e verde, acetinada.
por Ana Sevinate
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