(palavras)
“Sentir é criar (...) Sentir é compreender (...)“
Fernando Pessoa
Era uma vez uma formiga. Vestida de preto. Vestia-se toda de
preto. Vestia-se sempre de preto. Casaco. Vestido. Luvas. Chapéu com abas. Sapatos.
Fitas dos sapatos apertados em laço. Malinha de mão. Véu. Sombrinha. Tudo
negro. Vestia-se atrás do escuro. Ninguém a via. Nem os raios de sol, nem os
pingos da chuva. Por detrás do véu. Para todo o lado que ia, era seguida por
uma pequena nuvem. Negra. Fazia-lhe companhia. Conversava com ela. Deu-lhe um
nome. Deu-lhe o nome de “Tormento”. Por vezes, um denso nevoeiro rodeava-as.
Desapareciam de qualquer alcance. Ninguém as sentia.
Quem por ela passava ouvia a formiga soluçar. A quem a ela
perguntava “como vai? “, dizia “vai-se andando” e “assim assim, antes pelo
contrário. “ A quem a ela perguntava “porque soluça? “, dizia “porque sim, é o
que sei fazer. “ E lá ia ela acompanhada da sua “Tormento”. Uma soluçava, a
outra chovia. Conversavam sobre o peso imenso da brisa fresca, sobre os grãos
de areia que chegavam vindos das tempestades no deserto. Conversavam sobre o
facto de não receberem sorrisos. E a formiga retirava um lencinho preto,
bordado, de dentro da sua malinha de mão e apanhava, com ele, os seus soluços.
Era assim que os sentia, na palma da mão. Apertava-a para os sentir mais. Porque,
de resto, não sentia mais nada.
Um certo dia o sol aqueceu mais e ficou mais alegre. A
formiga sentiu o calor a picar a pela através das fazendas pretas. Vestiu um sobretudo.
Preto. Sentiu mais as picadas. Pediu então à sua “Tormento” que chovesse. Foi
fácil, bastou conversarem sobre o incómodo que é o aroma dos frutos silvestres
que espreitam o Verão que ia chegar de viagem. E a “Tormento” choveu, e a
formiga soluçou. As duas carpiram. Mas de tanto que o sol estava alegre, a
chuva evaporou e os soluços ficaram mudos. Não perceberam nada. Ficaram as duas
confusas. Estonteadas. Baralhadas.
E o calor picava mais. E o sol cantava mais. Na sua
confusão, na da formiga e na da sua nuvem negra, não tiveram outro remédio se
não tirar o negro que vestiam. A formiga, soluçando, tirou o casaco, tirou as
luvas e tirou o véu. A “Tormento” choveu o resto e o resto dela evaporou-se no
ar. A formiga tinha perdido a seu “Tormento”. Ficou aflita. Ao mesmo tempo o
sol tinha chegado aos seus braços fininhos e às suas maçãs do rosto. Podia
senti-lo. Ficou mais aflita. E foi, então, que chorou. E chorou. Sentiu
tristeza. Sentiu medo. Sentiu-se zangada. Sentiu saudades. E sentiu alivio. E o
sol sorriu-lhe e deu-lhe um dos seus raios. E a formiga sentiu ternura e fez
com ele uma fita para a cintura. Sorriu de volta e um passarinho verde pousou e
fez ninho no seu ombro. E a formiga sentiu esperança e pediu-lhe uma pena que
colocou no chapéu.
A quem e ela perguntava com um sorriso, “como está? “,
respondia “de todas as cores”. E a quem a ela perguntava “porque já não soluça,
respondia “porque trago comigo o arco-íris”. Por vezes a formiga sentia mais o
vermelho, outra vezes mais o lilás, ou o azul ou o cor-de-laranja. Às vezes
eram tons mais pasteis, outras vezes eram tons mais florescentes. E no topo da
sua cabeça formou-se uma nuvenzinha. Conversavam e cozinhavam o que as fazia corar.
Conversavam e pintavam o que as fazia cerrar os pulsos. Conversavam e
costuravam o que as fazia perder a cabeça. Conversavam e escreviam o que as
fazia querer gritar. Conversavam e esculpiam o que lhes fazia falta. Conversavam
e fotografavam o que as fazia ficar com a pulga atrás da orelha. Conversavam e semeavam
o que as fazia sonhar. Às vezes caiam gotas de água, às vezes choviam raios e
coriscos. Conversavam e mudavam as duas de cor.
por Ana Sevinate
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