04/01/2019

os filhos do vento


(sentires) (imagens)


"Anda alegria no vento
sempre que vem do sol-pôr:
lá de onde vive a serrana
que me enfeitiçou d'amor..."

Robert Burns 
(poeta escocês, séc. XVIII)


Uma flor tão pequenina que podia bem ser o brinco de uma fada. Um fio de água que num ato de coragem se lança numa aventura. Imagina que é um pássaro. E, imediatamente, ganha asas. E quando, no meio do caminho, dá de caras com o seu sonho, renasce numa cascata.

Agora, não só voa, como também canta. Cantos de outrora que o sangue de alguns e a alma de todos entende. Preces que, por magia, dão poder à intenção.

Tufos cor de violeta. Camas de veludo? Ou promessas de gentileza pespontando a imensidão? Cardos com pompons, afinal. Imensidão sem amparo. Para o vento. A não ser o do vale, que é estreito e profundo. Amparo e local de encontro. Do veado rei. Da lebre patrulha. Do esquilo cor de cometa. Em velocidade de cosmonauta.

Águia que nos diz que a terra acaba aqui. Sim, porque embora não pareça, o céu continua muito para além das terras altas. Afinal.

Astro sol que reúne, em nó triplo, as nuvens, o nosso reflexo e o descampado. O arco-íris, inevitável. Reencontramo-nos todos ali. Foi o vento que nos trouxe e foi o vento que nos levou. E foi o vento que nos trouxe de volta. Até aqui. A todos. Porque somos todos filhos do vento. E ser filho do vento é ser tudo e é ser nada. É ser folha e ser ar. É ser rocha e é ser terra. É ser barco e é ser lago. É ser fogueira e é ser trovoada.

É ser lã, que aquece pelos desígnios de um tear que sabe tecer em xadrez. Mas que, para já, se espalha por mil pontinhos brancos e alpinistas.

Porque somos todos filhos do vento, encontramo-nos todos aqui. Abraçados pelo mar. O mar, que mais parece um desenho que as montanhas traçaram num momento de capricho. Às curvas. Às contracurvas. Encontramo-nos todos aqui. Neste preciso momento em que nos lembramos que somos livres.

Somos seixos rolados de uma baía a norte. Somos a gente que semeia a possibilidade de um amanhã diferente. Comunidade. Somos cogumelos, povoações discretas que guardam todos os segredos do universo. Santuários vegetais. Os segredos, também, daqueles que já partiram. Símbolos. Santuários de pedra. Partiram e ficaram. No vento. Conosco.  

Ficaram com as abelhas e com o pólen. Com os monumentos de pedra esculpidos pelo tempo e pelos deuses.

E de repente, pegamos numa outra flor pequenina. Ou numa baga, pequenina. E compreendemos a perfeição. No silêncio. Compreendemos, na pele, que não existem trilhos certos nem trilhos errados. Só caminhos, afinal. Os da cascata.

Encontramo-nos todos aqui. No vale. Foi o vento. E por vezes, espreita um castelo. E entramos. Ou não. E por vezes, espreita uma árvore. E criamos raízes. Ou não. E por vezes surge um bosque. E é um regresso a casa. Ou não. E por vezes, chove. E deixamo-nos molhar. Ou não.

E desenhamos, tal como a terra faz com o mar, o futuro com sete cores. Ou a preto e branco. O que a imaginação nos trouxer. Selvagem. Como um monstro marinho.

Pois e se o sentido de pertença for uma ilusão que a separação criou? E se o ali não for o lugar, mas sim o vento? Porque, se assim for, somos todos dali. E daqui. Porque, se assim for, também somos de onde o vento nos levar. E a beleza dali, onde todos nos reencontramos, irá sempre seguir a nossa sombra. Atrás do vento.    



por Ana Sevinate
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